domingo, 15 de setembro de 2019

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Quadro comparativo entre Platão e Aristóteles


Pensamento de Aristóteles

Aristóteles

Aristóteles classificou e sistematizou o pensamento filosófico alcançado até então, iniciando o período sistemático da Filosofia Antiga.
Aristóteles operou significativas mudanças na Filosofia Antiga, produzida na região da Grécia. Tal produção filosófica já havia passado pelos períodos cosmológico (pré-socrático) e antropológico (socrático) e iniciava, então, o seu período sistemático.

Os estudos aristotélicos influenciaram pensadores medievais da Escolástica, principalmente Alberto Magno e Tomás de Aquino. Também foram influenciados por ele filósofos empiristas da Modernidade, que retomaram a ideia de que o conhecimento também é obtido por meio da prática, operando uma radical e mais completa elaboração da tese do conhecimento como fruto dos sentidos corpóreos e das experiências práticas. Aristóteles também estudou Lógica, Metafísica, Política, Ética, Ciências Naturais (tendo escrito tratados sobre Biologia e Física), Retórica e Estética.

Quem foi Aristóteles?

Aristóteles nasceu na cidade de Estagira, na Macedônia, em 384 a.C. Foi um dos três grandes filósofos da Grécia Antiga, tendo convivido e estudado com Platão. Sabe-se que, em sua juventude, teve uma sólida formação em ciências, o que influenciou bastante a sua produção filosófica. Ainda jovem, o filósofo foi para Atenas, onde conheceu o seu mestre Platão e foi estudar na Academia — centro de estudos e discussões sobre Filosofia e Política fundado pelo professor de Aristóteles nos arredores de Atenas.

Após anos de estudos na Academia, Aristóteles passou a lecionar na instituição, aprofundando-se em seus estudos sobre temas da Filosofia Platônica (de forte inspiração socrática) — que iam de conhecimentos de Ética e Política até questões como o conhecimento da verdade e a formação das ideias. Na medida em que estudava tais temas, Aristóteles formulava as suas próprias teorias, o que o levou a um afastamento intelectual das ideias platônicas e marcou uma cisão muito grande dele com o seu mestre, representada na valorização do conhecimento empírico.

Contam as suas biografias que, na ocasião da morte de Platão, Aristóteles (que já lecionava há muito tempo na Academia) esperava um cargo de gestão na instituição de ensino. Ao não receber esse cargo, o pensador desligou-se da Academia e partiu de Atenas para a cidade de Artaneus, na Ásia Menor, tornando-se consultor e conselheiro político entre os anos de 347 e 343 a.C.

Nesse último ano, ele resolveu retornar à Macedônia e, na ocasião, tornar-se preceptor de Alexandre, herdeiro do império macedônico. Em 335 a.C., na ocasião da posse de Alexandre como imperador devido à morte de seu pai, Aristóteles seguiu de volta para Atenas e fundou, em um local próximo à cidade, o seu Liceu — um centro de estudos de filosofia e esportes para os jovens atenienses.


Principais ideias

→ Sistematização

Antes de Aristóteles, os estudos de Filosofia compreendiam uma mistura de Astronomia, Física, Matemática, Cosmologia, Política, Ética, Estética, Retórica, entre outras áreas do conhecimento. O filósofo foi o primeiro a classificar e a sistematizar essas áreas, desenvolvendo estudos específicos sobre cada tema.

→ Política e Ética

Aristóteles foi um defensor do sistema político democrático pelo qual Atenas já havia passado, tendo escrito um livro sobre isso. Também escreveu tratados de Ética, em que afirmava a necessidade da busca de uma moderação das ações humanas baseada na prudência, para que a vida em sociedade levasse os cidadãos à felicidade.

→ Metafísica

Tendo aprimorado os estudos platônicos sobre o assunto e, em certa medida, afastando-se um pouco das ideias de seu mestre, Aristóteles escreveu um tratado de dez livros chamado “Estudos de Filosofia Primeira”, que, mais tarde, seria conhecido por “Metafísica”. Esses estudos, segundo o próprio filósofo, tratavam sobre o ser em geral, ou seja, seriam uma espécie de ciência geral, mãe de todas as ciências.

→ Lógica

Aristóteles fundamentou as primeiras noções da Lógica Clássica, baseada na argumentação e na Retórica. Em seus estudos, que buscavam algumas noções metafísicas, como a divisão das categorias do que se fala, ele buscou uma forma de linguagem que fosse formalmente válida e que buscasse argumentos que fossem fundamentados em premissas. Surgiu aí a noção de silogismo.

→ Empirismo

Sendo o primeiro filósofo a fundamentar a necessidade do conhecimento prático advindo da observação e da atenção aos sentidos do corpo, Aristóteles deixou em seu legado intelectual o conhecimento empírico, que mais tarde ressoaria na Filosofia Escolástica e na Filosofia Moderna, chamando a atenção dos pensadores para o entendimento dos efeitos do mundo com base em suas causas.

Isso representou um afastamento do modelo de conhecimento platônico, baseado na busca intelectual pela Ideia, que seria pura, eterna e imutável. Platão considerava que o conhecimento advindo dos sentidos seria imperfeito e enganador. Na pintura apresentada abaixo, o pintor renascentista Rafael Sânzio mostra essa discordância entre os dois pensadores ao compor a cena com Platão apontando para cima, como quem aponta para o Mundo das Ideias, e Aristóteles com a mão espalmada para o chão, como quem defende que o conhecimento está aqui, no mundo material.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Conclusões sobre Sócrates


Conclusões sobre Sócrates

O discurso de Sócrates trouxe uma série de aquisições e novidades, mas também deixou uma série de problemas em aberto.
Em primeiro lugar, o seu discurso sobre a alma, que se limitava a determinar a obra e a função da própria alma (a alma é aquilo pelo qual nós somos bons ou maus), exigia uma série de aprofundamentos: se ela se serve do corpo e o domina, isso quer dizer que é outra coisa que não o corpo, ou seja, distingue-se dele ontologicamente. Sendo assim, o que é ela? Qual é o seu “ser’’? Qual a sua diferença em relação ao corpo?
Análogo discurso pode-se fazer em relação a Deus.Sócrates conseguiu “desfisicizá-lo”: o seu Deus é bem mais puro do que o ar- pensamento de Diógenes de Apolônia e, em geral, coloca-se decidi­damente acima do horizonte dos físicos. Mas o que é essa Divina Inteligência? Em que ela se distingue dos elementos físicos?
Quanto às aporias do intelectualismo socrático, já falamos delas. Devemos aqui apenas completar o que já foi dito, destacando as últimas aporias, implícitas na doutrina da virtude-saber. E verdade que o saber socrático não é vazio, como pretenderam alguns, dado que tem por objeto apsyché e o cuidado com a psyché e dado ainda que também se cuida dapsyché simplesmente despojando-a das ilusões do saber e levando-a ao reconhecimento do não-saber. Entretanto, também é verdade que o discurso so­crático deixa a impressão de, em um certo ponto, dissipar-se ou, pelo menos, ficar bloqueado no meio do caminho. E é verdade ainda que, assim como era formulado, o discurso socrático só tinha sentido na boca de Sócrates, sustentado pela força irrepetível de sua personalidade. Na boca de seus discípulos, fatalmente, devia se reduzir através da eliminação de algumas instâncias de fundo de que era portador ou então ampliar-se através do aprofunda­mento daquelas instâncias, mediante a sua fundamentação meta­física. Contra as simplificações operadas pelas escolas socráticas menores, mais uma vez seria Platão a tentar dar vim conteúdo preciso àquele saber, atribuindo-lhe o bem como objeto supremo, primeiro genericamente, mas, depois, tentando dar a esse bem uma estatura ontológica, com a construção de uma metafísica.
Também a ilimitada confiança socrática no saber, nologos em geral (e não no seu conteúdo particular), foi duramente abalada pelo êxito problemático da maiêutica. Em última análise, o logos socrático não está em condições de fazer parir qualquer alma, mas apenas as almas grávidas. Trata-se de vima confissão plena de múltiplas implicações, que Sócrates, porém, não sabe e não pode explicitar: o logos e o instrumento dialógico que se funda inteira­mente no logos não bastam para produzir ou, pelo menos,- para fazer com que a verdade seja reconhecida e para fazer com que se viva na verdade. Muitos voltaram as costas para o logos socrático: porque não estavam “grávidos”, diz o filósofo. Mas então quem fecunda a alma e a torna grávida? Essa é uma pergunta que Sócrates não se propôs e à qual, com certeza, não teria podido responder. E, olhando bem, o cerne dessa dificuldade é ô mesmo apresentado pelo comportamento do homem que “vê e conhece o melhor” mas, no entanto, “faz o pior”. Embora, colocando-a dessa forma, Sócrates tenha acreditado contornar a dificuldade com o seu intelectualismo,na verdade colocacada de outra forma, ele não soube contorná-la, eludindo-a com a imagem da “gravidez”, be­líssima, mas que nada resolve.
Uma ultima aporia esclarecerá ainda melhor a forte tensão interna do pensamento de Sócrates. O nosso filósofo apresentou a sua mensagem aos atenienses, parecendo de certa forma fechá-la nos estreitos limites de uma cidade. Sua mensagem não foi por ele apresentada expressamente como uma mensagem para toda a Grécia e para toda a humanidade. Evidentemente, condicionado pela situação sociopolítica, parece que ele não se deu conta de que sua mensagem ia bem além dos muros de Atenas, valendo para o mundo inteiro.
Por outro lado, ter identificado na alma a essência do homem, no conhecimento a verdadeira virtude e no autodomínio e na liberdade interior os princípios cardeais da ética levava à procla­mação da autonomia do indivíduo enquanto tal. Mas somente os socráticos menores é que extrairiam em parte essa dedução e somente os filósofos da época helenística é que a levariam a uma formulação explícita.
Sócrates poderia ser chamado de “Hermas bifronte”:por vim lado, o seu não-saber parece indicar a negação da ciência, por outro parece ser uma via de acesso a uma autêntica ciência superior; por vim lado, a sua mensagem pode ser lida como simples persuasão moral, por outro lado como abertura para as descobertas platônicas da metafísica; por um lado, a sua dialética pode parecer até mesmo sofísticae erística, por outro como fundação da lógica científica; por um lado, sua mensagem parece circunscrita aos muros da polisateniense, por outro se abre ao mundo inteiro, em dimensões cosmopolitas.

A “refutação” e a “maiêutica” socráticas


A “refutação” e a “maiêutica” socráticas

A “refutação” (élenchos), em certo sentido, constituía a pars destruens do método, ou seja, o momento em que Sócrates levava o interlocutor a reconhecer a sua própria ignorância. Primeiro, ele forçava vima definição do assunto sobre o qual se centrava a investigação; depois, escavava de vários modos a definição forne­cida, explicitava e destacava as carências e contradições que implicava; então, exortava o interlocutor a tentar uma nova definição, criticando-a e refutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuava procedendo, até o momento em que o interlo­cutor se declarava ignorante.
E evidente que a discussão provocava irritação ou reações ainda piores nos sabichões e nos medíocres. Mas, nos melhores, a refutação provocava um efeito de purificação das falsas certezas, ou seja, um efeito de purificação da ignorância, a tal ponto que Platão podia escrever a respeito: “(...) Por todas essas coisas, (...) devemos afirmar que a refutação é a maior e mais fundamental purificação. E quem não foi por ela beneficiado, mesmo tratando- se do Grande Rei, não pode ser pensado senão como impuro das mais graves impurezas, privado de educação e até mesmo feio, precisamente naquelas coisas em relação às quais conviria que fosse purificado e belo no máximo grau alguém que verdadeira­mente quisesse ser homem feliz.”
E, assim, passamos ao segundo momento do método dialé­tico. Para Sócrates, a alma só pode alcançar a verdade “se dela estiver grávida”. Com efeito, como vimos, ele se professava igno­rante e, portanto, negava firmemente estar em condições de transmitir um saber aos outros ou, pelo menos, um saber consti­tuído por determinados conteúdos. Mas, da mesma forma que a mulher que está grávida no corpo tem necessidade da parteira para dar à luz, também o discípulo que tem a alma grávida de verdade tem necessidade de uma espécie de arte obstétrica espiritual que ajude essa verdade a vir à luz — e nisso consiste exatamente a “maiêutica” socrática.
Eis a estupenda página em que Platão descreve a maiêutica: “Ora, em todo o resto, a minha arte obstétrica se assemelha à das parteiras, mas difere em uma coisa: ela opera nos homens e não nas mulheres e assiste as almas parturientes e não os corpos. E minha maior capacidade de que, através dela, eu consigo discernir segura­mente se a alma do jovem está parindo fantasmas e mentiras ou a alguma coisa vital e real. Pois algo eu tenho em comum com as parteiras: também eu sou estéril (...) de sabedoria. E a reprovação que tantos já me fizeram, de que eu interrogo os outros, mas, eu próprio, nunca manifesto meu pensamento sobre nenhuma ques­tão, ignorante que sou, é uma reprovação muito verdadeira. E à razão é exatamente esta: Deus me leva a agir como obstetra, mas me interdita de gerar. Em mim mesmo, portanto, eu não sou nada sábio, nem de mim saiu qualquer descoberta sábia que seja geração de minha alma. Entretanto, todos aqueles que gostam de estar comigo, embora alguns deles pareçam inicialmente de todo igno­rantes, mais tarde, continuando a frequentar minha companhia, desde que Deus lhes permita, todos eles extraem disso um extraor­dinário proveito, como eles próprios e os outros podem ver. E está claro que não aprenderam nada de mim, mas só de si mesmos encontraram e geraram muitas e belas coisas. Mas o fato de tê-los ajudado a gerar, esse mérito sim cabe a Deus e a mim.”

A ironia socrática

A ironia socrática

A ironia é a característica peculiar da dialética socrática, não apenas do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Em geral, ironia significa “simulação”. Em nosso caso específico, indica o jogo brincalhão, múltiplo e variado das ficções e dos estratagemas realizados por Sócrates para levar o interlocu­tor a dar conta de si mesmo. Como escreveu um refinado estudioso, “nessa brincadeira, Sócrates transforma em palavras ou fatos um disfarce, mostrando ser um grande amigo do interlocutor, admirar sua capacidade e seus méritos, pedir-lhe conselho ou ensinamentos e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, tem o cuidado de fazer com que a função seja transparente para quem observa mais a fundo” (H. Maier). Em suma: a brincadeira está sempre em função de vim objetivo sério e, portanto, é sempre metódica.
Note-se que, às vezes, em suas simulações irônicas, Sócrates fingia até mesmo acolher como próprios os métodos do interlocutor, especialmente quando era vim homem de cultura, particularmente um filósofo, e brincava de engrandecê-los até o limite da caricatura, para derrubá-los com a mesma lógica que lhes era própria e amarrá-los na contradição.
Mas, por debaixo das várias máscaras que Sócrates assumia seguidamente, eram sempre visíveis os traços da máscara essen­cial, a do não-saber e da ignorância, de que falamos: pode-se até dizer que, no fundo, as máscaras policromáticas da ironia socrática eram variantes da máscara principal, as quais, com um hábil e multiforme jogo de dissolvências, no fim das contas sempre reve­lavam a principal.
Mas ainda restam por esclarecer os dois momentos da “refu­tação” e da “maiêutica”, que são os momentos constitutivos estru­turais da dialética.

O “não saber socrático”

O “não saber socrático”

Os sofistas mais famosos colocavam-se em relação aos ouvin­tes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário, colocava-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe, tendo tudo para aprender.
Mas muitos equívocos têm sido cometidos em relação a esse “não saber” socrático, a ponto de se ver nele o início do ceticismo. Na realidade, ele pretendia ser uma afirmação de ruptura: a) em relação ao saber dos naturalistas, que se havia revelado vão; b) em relação ao saber dos sofistas, que logo se havia revelado mera presunção; c) em relação ao saber dos políticos e dos cultores das várias artes, que quase sempre se revelava inconsistente e acrítico. Mas não é só isso: o significado da afirmação do não-saber socrático pode ser calibrado mais exatamente se, além de relacioná-lo com o saber dos homens, o relacionarmos também com o saber de Deus. Como veremos, para Sócrates Deus é onisciente, estendendo-se o seu conhecimento do universo ao homem, sem qualquer espécie de restrição. Ora, é precisamente quando comparado com a estatura desse saber divino que o saber humano mostra-se em toda a sua fragilidade e pequenez. E, nessa ótica, não apenas aquele saber ilusório de que falamos, mas também a própria sabedoria humana socrática revela-se um não-saber. De resto, na Apologia, inter­pretando a sentença do Oráculo de Delfos, segundo a qual ninguém era mais sábio do que Sócrates, o próprio Sócrates explicita esse conceito: “Unicamente Deus é sábio. E é isso o que ele quer significar em seu oráculo: que a sabedoria do homem pouco ou nada vale. Considerando Sócrates como sábio, creio eu, não quer se referir propriamente a mim, Sócrates, mas somente usar o meu nome como um exemplo. E quase como se houvesse querido dizer assim: ‘Homens, é sapientíssimo dentre vós aquele que, como Sócrates, tiver reconhecido que, na verdade, a sua sabedoria não tem valor.’ ”
A contraposição entre “saber divino” e “saber humano” era uma das antíteses muito caras a toda a sabedoria proveniente da Grécia — que, portanto, Sócrates volta a reafirmar.
Por fim, deve-se destacar o poderoso efeito irônico de benéfico abalo que o princípio do não-saber provocava nas relações com o interlocutor: acarretava o atrito do qual brotava a centelha do diálogo.

O método dialético de Sócrates e sua finalidade


O método dialético de Sócrates e sua finalidade

O método e a dialética de Sócrates também estão ligados à sua descoberta da essência do homem como psyché, porque tendam de modo consciente a despojar a alma da ilusão do saber, eurando-a dessa maneira a fim de tomá-la idônea a receber a verdade. Assim, as finalidades do método socrático são fundamentalmente de natureza ética e educativa e apenas secundária e mediatamente de natureza lógica e gnosiológica. Em suma: dialogar com Sócrates levava a um “exame da alma” e a uma prestação de contas da própria vida, ou seja, a um “exame moral”, como bem destacavam seus contemporâneos. E como podemos ler em um testemunho platônico: “Quem quer que esteja próximo a Sócrates e, em contato com ele, ponha-se a raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado, é arrastado pelas espirais do discurso e inevitavelmente forçado a seguir adiante, até ver-se prestando contas de si mesmo, dizendo inclusive de que modo vive e de que modo viveu. E, uma vez que se viu assim, Sócrates não mais o deixa.”
E precisamente a esse “prestar contas da própria vida”, que era o fim específico do método dialético, é que Sócrates atribui a verdadeira razão que lhe custou a vida: para muitos, calar Sócra­tes através da morte significava libertar-se de ter que “desnudar a própria alma”. Mas o processo posto em movimento por Sócrates já se havia tomado irreversível. E a supressão física de sua pessoa não podia mais, de modo algum, deter esse processo. Atai ponto que Platão chegou a pôr na boca de Sócrates esta profecia: “(...) Eu digo, cidadãos que me haveis matado, que uma vingança recairá sobre vós, logo depois de minha morte, bem mais grave do que aquela pela qual vos vingastes de mim, matando-me. Hoje, vós fizestes isso na esperança de que vos tereis libertado de ter que prestar contas de vossa vida. No entanto, vos acontecerá inteiramente o contrário: eu vô-lo predigo. Não serei mais somente eu, mas muitos a vos pedir contas: todos aqueles a quem até hoje eu detinha e vós não percebíeis. E serão tanto mais obstinados quanto mais jovens são — e tanto mais vós vos indignardes. Pois se, matando homens, pensais impedir que alguém mostre a vergonha de vosso viver errôneo, não estais pensando bem. Não, não é esse o modo de libertar-vos dessas pessoas, não é absolutamente possível e nem belo. Mas há outro modo, belíssimo e muito fácil: não cortar a palavra alheia, mas, muito mais, trabalhar para ser sempre mais virtuoso e melhor.”
E agora, que estabelecemos a finalidade do “método” socrá­tico, devemos identificar a sua estrutura.
A dialética de Sócrates coincide com o seu próprio dialogar (dia-logos), que consta de dois momentos essenciais: a “refutação” e a “maiêutica”. Ao fazê-lo, Sócrates valia-se da máscara do “não saber” e da temida arma da “ironia”. Cada um desses pontos deve ser compreendido adequadamente.

A teologia socrática



A teologia socrática

E qual era a concepção de Deus que Sócrates ensinava, a ponto de oferecer a seus inimigos o pretexto para condená-lo à morte, já que era contrária aos “deuses em que a cidade acredi­tava”? Era a concepção indiretamente preparada pelos filósofos naturalistas, culminando no pensamento de Anaxágoras e de Diógenes de Apolônia: o Deus-inteligência ordenadora. Sócrates, porém, desligou essa concepção dos pressupostos próprios desses filósofos (sobretudo de Diógenes), “des-fisicizando-a” e deslocando- a para um plano afastado o mais possível dos pressupostos próprios da “filosofia da natureza” anterior.
Sobre esse tema, pouco sabemos através de Platão, ao passo que Xenofonte nos informa amplamente. Eis o raciocínio registra­do nos Memorabilia, que constitui a primeira prova racional da existência de Deus que chegou até nós e que iria constituir a base de todas as provas posteriores: a) Aquilo que não é simples obra do acaso, sendo constituído para alcançar um objetivo e um fim, pressupõe uma inteligência que o produziu por razões evidentes. Ademais, observando o homem, em especial, notamos que cada um e todos os seus órgãos estão constituídos de tal modo que não podem ser absolutamente explicáveis como obra do acaso, mas apenas como obra de uma inteligência que idealizou expressamente essa constituição, b) Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que, ao contrário dos artífices terrenos, que podem ser vistos ao lado de suas obras, essa Inteligência não pode ser vista. Mas Sócrates observa que essa objeção não procede, porque a nossa alma (= inteligência) também não pode ser vista e, mesmo assim, ninguém ousa afirmar que, pelo fato de a alma (= inteligência) não ser vista, também não existe e que nós fazemos por acaso tudo o que fazemos,
c) Por fim, segundo Sócrates, é possível estabelecer, com base nos privilégios que o homem tem em relação a todos os outros seres (como, por exemplo, a estrutura física mais perfeita e, sobretudo, a posse de alma e de inteligência), que o artífice divino cuidou do homem de um modo inteiramente particular.
Como se vê, o argumento gira em tomo deste núcleo central: o mundo e o homem são constituídos de tal modo (ordem, finali­dade) que só uma causa adequada (ordenadora, finalizante e, portanto, inteligente) pode explicá-los. E, com sua ironia, Sócrates lembrava àqueles que rejeitavam esse raciocínio que nós pos­suímos uma parte de todos os elementos que estão presentes em grandes massas no universo, coisa que ninguém ousa negar: como então poderíamos pretender que nós, homens, nos assenhoreamos de toda a inteligência que existe, não podendo haver nenhuma ou­tra inteligência fora de nós? E evidente a incongruência lógica des­sa pretensão.
O Deus de Sócrates, portanto, é a inteligência, que conhece todas as coisas sem exceção e é atividade ordenadora e providência. E uma providência, porém, que se ocupa com o mundo e os homens em geral, como também do homem virtuoso em particular (para a mentalidade antiga, o semelhante tem comunhão com o seme­lhante, razão pela qual Deus tem uma comunhão estrutural com o bom), mas não com o homem individualmente enquanto tal (a menos que se trate de homem mau). Somente no pensamento cristão é que surgiria uma providência que se ocupa com o in­divíduo enquanto tal.

A revolução da “não-violência”

A revolução da “não-violência”

Muitíssimo se discutiu sobre as razões que levaram à conde­nação de Sócrates. Do ponto de vista jurídico, está claro que procediam os crimes que lhe foram imputados. Ele “não acreditava nos deuses da cidade” porque acreditava num Deus superior e “corrompia os jovens” porque lhes ensinava essa doutrina. En­tretanto, depois de se ter defendido corajosamente no tribunal, tentando demonstrar que estava com a verdade, mas não tendo conseguido convencer os juízes, aceitou a condenação e recusou-se a fugir do cárcere, apesar dos amigos terem organizado tudo para a sua fuga. As suas motivações eram exemplares: a fuga teria significado uma violação do veredito e, portanto, violação da lei. A verdadeira arma de que o homem dispõe é a sua razão e, portanto, a persuasão. Se, fazendo uso da razão, o homem não consegue alcançar seus objetivos com a persuasão, então deve se conformar, porque, como tal, a violência é tuna coisa ímpia. Como Platão coloca na boca de Sócrates: “Não se deve desertar, nem retirar-se, nem abandonar o seu posto, mas sim, na guerra, no tribunal e em qualquer lugar, é preciso fazer aquilo que a pátria e a cidade ordenam ou então persuadi-las em que consiste a justiça, ao passo que fazer uso da violência é coisa ímpia”. E Xenofonte escre­ve: “Preferiu morrer, permanecendo fiel à lei, do que viver vio­lando-a”.
Ao dotar Atenas de leis, Sólon já havia proclamado em alta voz: “Não quero valer-me da violência das tiranias”, mas sim da justiça. E um estudioso observou oportunamente o seguinte: “Na Ática dos primeiros séculos, o fato de que nenhum homem em cujas mãos o destino colocou o poder tenha deixado de exercê-lo nem a ele renunciado por amor à justiça é algo que teve consequências incalculáveis para a vida jurídica e política da Grécia e da Europa” (B. Snell). Mas a posição assumida por Sócrates foi ainda mais importante. Com ele, além de ser explicitamente teorizada, a concepção da revolução da não-violência foi demonstrada inclusive com sua própria morte, sendo desse modo transformada em uma “conquista para sempre”. Ainda recentemente, Martin Luther King, o líder negro norte-americano da revolução não-violenta, baseava-se nos princípios socráticos, além dos cristãos.

O novo conceito de felicidade



O novo conceito de felicidade

Precisamente a partir de Sócrates, a maior parte dos filósofos gregos passou a apresentar suas mensagens ao mundo como men­sagens de felicidade. Em grego, “felicidade” se diz “eudaimonía”, que, originalmente, significava ter tido a sorte de possuir um demônio-guardião bom e favorável, que garantia uma boa sorte e uma vida próspera e agradável. Mas os pré-socráticos já haviam interiorizado esse conceito: Heráclito escrevia que “o caráter moral é o verdadeiro demônio do homem” e que “a felicidade é bem diferente dos prazeres”, ao passo que Demócrito dizia que “não se tem a felicidade nos bens exteriores” e que “a alma é a morada de nossa sorte”.
Com base nas premissas que ilustramos, o discurso de Sócrates aprofunda e fundamenta do modo sistemático precisa­mente e esses conceitos. A felicidade não pode vir das coisas exterio­res, do corpo, mas somente da alma, porque esta e só esta é a sua essência. E a alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sócrates: “Para mim, quem é virtuoso, seja homem ou mulher, é feliz, ao passo que o injusto e malvado é infeliz”. Assim como a doença e a dor física são desordem do corpo, a saúde da alma é ordem da alma — e essa ordem espiritual ou harmonia interior é a felicidade.
Sendo assim, segundo Sócrates, o homem virtuoso entendido nesse sentido “não pode sofrer nenhum mal, nem na vida, nem na morte”. Nem na vida, porque os outros podem danificar-lhe os haveres ou o corpo, mas não arruinar-lhe a harmonia interior e a ordem da alma. Nem na morte, porque, se existe um além, o virtuoso será premiado; se não existe, ele já viveu bem no aquém, ao passo que o além é como um ser no nada. De qualquer forma, Sócrates tinha a firme convicção de que a virtude já tem o seu prêmio intrinsecamente, em si mesma, isto é, essencialmente: assim, vale a pena ser virtuoso, porque a própria virtude já cons­titui um fim. E, sendo assim, para Sócrates, o homem pode ser feliz nesta vida, quaisquer que sejam as circunstâncias em que lhe cabe viver e qualquer que seja a situação no além. O homem é o verdadeiro artífice de sua própria felicidade ou infelicidade.

A descoberta socrática do conceito de liberdade


A descoberta socrática do conceito de liberdade

A mais significativa manifestação da excelência da psyché ou razão humana se dá naquilo que Sócrates denominou de “autodomínio” (enkráteia), ou seja, do domínio de si mesmo nos estados de prazer, dor e cansaço, no urgir das paixões e dos impulsos: “Considerando o autodomínio como a base da virtude, cada homem deveria procurar tê-lo.” Substancialmente, o auto­domínio significa domínio de sua racionalidade sobre a sua própria animalidade, significa tomar a alma senhora do corpo e dos instintos ligados ao corpo. Consequentemente, pode-se compre­ender perfeitamente que Sócrates tenha identificado expressa­mente a liberdade humana com esse domínio da racionalidade sobre a animalidade. O verdadeiro homem livre é aquele que sabe dominar os seus instintos, o verdadeiro homem escravo é aquele que, não sabendo dominar seus instintos, toma-se vítima deles.
Estreitamente ligado a esse conceito de autodomínio e de liberdade encontra-se o conceito de “autarquia”, isto é, de “auto­nomia”. Deus não tem necessidade de nada. E o sábio é aquele que mais se aproxima desse estado, sendo portanto aquele que procura ter necessidade apenas de muito pouco. Com efeito, para o sábio que vence os instintos e elimina todas as coisas supérfluas, basta a razão para que viva feliz.
Como foi justamente ressaltado, estamos aqui diante de uma nova concepção de herói. O herói, tradicionalmente, era aquele que é capaz de vencer todos os inimigos, os perigos, as adversidades e o cansaço externos. Já o novo herói é aquele que sabe vencer os inimigos interiores: “Somente o sábio, que esmagou os monstros selvagens das paixões que se lhe agitam no peito, é verdadeira­mente suficiente a si mesmo: ele se aproxima ao máximo da divindade, do ser que não tem necessidade de nada” (W. Jaeger).

Os paradoxos da ética socrática



Os paradoxos da ética socrática

A tese socrática que apresentamos implicava duas consequências, que foram consideradas muito mais como “paradoxos”, mas que são muito importantes e devem ser oportunamente clarificadas: 1) A virtude (cada uma e todas as virtudes, sabedoria, justiça, fortaleza, temperança) é ciência (conhecimento) e o vício (cada um e todos os vícios) é ignorância. 2) Ninguém peca volun­tariamente: quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem. Essas duas proposições resumem tudo o que foi denominado “intelectua­lismo socrático”, enquanto reduzem o bem moral a um dado de conhecimento, de modo a considerar impossível conhecer o bem e não fazê-lo. O intelectualismo socrático influenciou todo o pensamento dos gregos, a ponto de tomar-se quase um mínimo denominador comum de todos os sistemas, seja na época clássica, seja na época helenística. Entretanto, malgrado o seu excesso, as duas proposições enunciadas contêm algumas instâncias muito importantes.
1) Em primeiro lugar, cabe destacar a forte carga sintética da primeira proposição. Com efeito, a opinião corrente entre os gregos antes de Sócrates (inclusive a dos sofistas, que, no entanto, pretendiam ser “mestres da virtude”) considerava as diversas virtudes como uma pluralidade (uma coisa é a “justiça”, outra a “santidade”, outra a “prudência”, outra a “temperança”, outra a “sabedoria”), mas da qual não sabiam captar o nexo essencial, ou seja, aquele algo que faz com que as diversas virtudes sejam uma unidade (algo que faça precisamente com que todas e cada uma delas sejam “virtudes”). Além disso, todos viam as diversas virtu­des como coisas fundadas nos hábitos, no costume e nas convenções aceitas pela sociedade. Sócrates, no entanto, tenta submeter a vida humana e os seus valores ao domínio da razão (assim como os naturalistas haviam tentado submeter o cosmos e suas manifes­tações ao domínio da razão). E como, para ele, a própria natureza do homem é a sua alma, ou seja, a razão, e as virtudes são aquilo que aperfeiçoa e concretiza plenamente a natureza do homem, ou seja, a razão, então é evidente que as virtudes revelam-se como tuna forma de ciência e de conhecimento, precisamente porque são a ciência e o conhecimento que aperfeiçoam a alma e a razão, como já dissemos.
2) Mais complexas são as razões que estão na base do segundo paradoxo. Sócrates, porém, viu muito bem que o homem, por sua natureza, procura sempre o seu próprio bem e que, quando faz o mal, na realidade não o faz porque se trate do mal, mas porque daí espera extrair um bem. Dizer que o mal é “involuntário” significa que o homem se engana ao esperar um bem dele e que, na realidade, está cometendo um erro de cálculo e, portanto, se enganando. Ou seja, em última análise, é vítima de “ignorância”.
Ora, Sócrates tem perfeitamente razão quando diz que o conhecimento é condição necessária para fazer o bem (porque, se não conhecemos o bem, não podemos fazê-lo), mas está enganado ao considerar que, além de condição necessária, ela também é condição suficiente. Em suma, Sócrates cai numa espécie de racionalismo. Com efeito, para fazer o bem também é necessário o concurso da “vontade”. Mas os filósofos gregos não detiveram sua atenção na “vontade”, que iria se tornar central e essencial na ética dos cristãos. Para Sócrates, em conclusão, é impossível dizer “vejo e aprovo o melhor, mas no agir me atenho ao pior”, porque quem vê o melhor necessariamente também o faz. Em consequência, para Sócrates, como para quase todos os filósofos gregos, o pecado se reduz a um “erro de cálculo”, a um “erro de razão”, precisamente à “ignorância” do verdadeiro bem.

O novo significado de “virtude” e o novo quadro de valores

O novo significado de “virtude” e o novo quadro de valores
Em grego, aquilo que nós hoje chamamos “virtude” se diz “areté”, como já acenamos, significando aquilo que toma uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou, melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser. (Os gregos, portanto, falavam de virtude dos vários instrumentos, de virtude dos animais etc. Por exemplo: a “virtude” do cão é a de ser um bom guardião, a do cavalo é a de correr velozmente e assim por diante.) Consequentemente, a “virtude” do Intelectualismo ético.
O homem outra não pode ser senão aquilo que faz com que a alma seja tal como a sua natureza determina que seja, ou seja, boa e perfeita. E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conheci­mento”, ao passo que o “vício” seria a privação de ciência ou conhecimento, vale dizer, a “ignorância”.
Desse modo, Sócrates opera uma revolução no tradicional quadro de valores. Os verdadeiros valores não são aqueles ligados às coisas exteriores, como a riqueza, o poder, a fama, e tampouco os ligados ao corpo, como a vida, o vigor, a saúde física e a beleza, mas somente os valores da alma, que se resumem, todos, no “conhecimento”. Naturalmente, isso não significa que todos os valores tradicionais tomam-se desse modo “desvalores”; significa, simplesmente, que “em si mesmos, não têm valor”. Eles só se tomam ou não valores se forem usados como o “conhecimento” exige, òu seja, em função da alma e de sua “areté”.
Em resumo: riqueza, poder, fama, saúde, beleza e semelhan­tes “(...) ao que me parece, por sua natureza, não podem ser chamados de bens em si mesmos. A proposição é outra: dirigidos pela ignorância, revelam-se males maiores do que os seus contrários, porque mais capazes de servir a uma má direção; se, no entanto, são governados pelo juízo e pela ciência ou conhecimento, são bens maiores; em si mesmos, nem uns nem outros têm valor”.

A descoberta da essência do homem

A descoberta da essência do homem (o homem é a sua psyché)
Depois de um período de tempo em que ouviu a .palavra dos últimos naturalistas, mas sem se considerar de modo algum satisfeito, como já dissemos, Sócrates concentrou definitivamente o seu interesse na problemática do homem. Procurando resolver os problemas do “princípio” e da physis, os naturalistas se contradis­seram a ponto de sustentar tudo e o contrário de tudo (o ser é uno, o ser é múltiplo; nada se move, tudo se move; nada se gera nem se destrói, tudo se gera e se destrói), o que significa que se propuseram problemas insolúveis para o homem. Consequentemente, ele se concentrou no homem, como os sofistas, mas, ao contrário deles, soube chegar ao fundo da questão, a tal ponto que chegou a admitir, malgrado a sua afirmação geral de não-saber (da qual falaremos adiante), que era sábio nessa matéria: “Na verdade, atenienses, por nenhuma outra razão eu granjeei este nome senão por causa de certa sabedoria. E que sabedoria é essa? Essa sabedoria é precisamente a sabedoria humana (ou seja, a sabedoria que o homem pode ter sobre o homem)—e pode ser que, dessa sabedoria, eu seja sábio.”
Os naturalistas procuraram responder à seguinte questão: “O que é a natureza ou a realidade última das coisas?” Sócrates, porém, procura responder à questão: “O que é a natureza ou realidade última do homem?”, ou seja, “o que é a essência do homem?”.
Finalmente, a resposta é precisa e inequívoca: o homem é a sua alma, enquanto é precisamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E por “alma” Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. Em breve: para Sócrates, a alma é o eu consciente, ou seja, a consciência e a personalidade intelectual e moral. Consequentemente, com essa sua descoberta, como foi justamente destacado, “Sócrates criou a tradição moral e intelectual da qual a Europa sempre viveu desde então” (A.E. Taylor). E um dos maiores historiadores do pensamento grego explicitou ainda mais: “Para nós, a palavra alma, graças às correntes espirituais pelas quais passou à história, soa sempre com vima acentuação ética e religiosa. Assim como as palavras serviço de Deus e cuidar da alma (estas também usadas por Sócrates), ela tem uma conotação cristã. Mas ela assumiu esse elevado significado pela primeira vez na pregação persuasiva de Sócrates” (W. Jaeger).
E evidente que, se a essência do homem é a alma, cuidar de si mesmo significa cuidar da própria alma mais do que do corpo. E ensinar os homens a cuidarem da própria alma é a tarefa suprema do educador, precisamente a tarefa que Sócrates considera ter recebido de Deus, como se lê na Apologia: “Que é isto (...) é a ordem de Deus. E estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis cuidar do corpo, nem das riquezas, nem de qualquer outra coisa antes e mais do que da alma, de modo que ela se tome ótima e virtuosíssima, e de que não é das riquezas que nasce a virtude, mas da virtude que nasce a riqueza e todas as outras coisas que são bens para os homens, tanto individualmente para os cidadãos como para o Estado.”
Um dos raciocínios fundamentais feitos por Sócrates para provar essa tese é o seguinte: uma coisa é o “instrumento” que se usa e outra é o “sujeito” que usa o instrumento. Ora, o homem usa o seu próprio corpo como um instrumento, o que significa que o sujeito, que é o homem, e o instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta “o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas sim que é “aquilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é a psyché, a alma (= a in­teligência)”, de modo que a conclusão é inevitável: “A alma nos or­dena conhecer aquele que nos adverte: Conhece-te a ti mesmo. ” Nesse ponto, Sócrates já havia levado sua doutrina a tal ponto de consciência e de reflexão crítica que chegou a deduzir todas as conseqüências que logicamente brotam dela, como veremos.

O Daimonion Socrático

O "Daimonion" Socrático

Entre as acusações contra Sócrates estava também a de que era culpado “de introduzir novos daimónia”, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sócrates diz o seguinte a propósito da questão: “A razão (...) é aquela que muitas vezes e em diversas circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino e demoníaco, precisamente aquilo que Melito (o acusa­dor), jocosamente, escreveu no seu ato de acusação: é como uma voz que se faz ouvir dentro de mim desde quando era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer aquilo que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exorta a fazer.” Portanto, o daimonion socrático era “uma voz divina” que lhe vetava deter­minadas coisas: ele o interpretava como nma espécie de sortilégio, que o salvou várias vezes dos perigos ou de experiências negativas.
Os estudiosos ficaram muito perplexo diante desse daimonion. E as exegeses que dele foram propostas são as mais díspares. Alguns pensaram que Sócrates estivesse ironizando, outros fala­ram de voz da consciência, outros do sentimento que perpassa o gênio. E até se poderia incomodar a psiquiatria para entender a “voz divina” como fato patológico ou então chamar à cena as categorias da psicanálise. Mas é claro que, assim fazendo, estamos caindo no arbítrio.
Se quisermos nos limitar aos fatos, devemos raciocinar como segue.
Em primeiro lugar, deve-se destacar que o daimonion não tem nada a ver com o campo das verdades filosóficas. Com efeito, a “voz divina” interior não revela em absoluto a Sócrates a “sabe­doria humana” de que ele é portador, nem qualquer das propostas gerais ou particulares de sua ética. Para Sócrates, os princípios filosóficos extraem sua validade do logos e não da divina revelação.
Em segundo lugar, Sócrates não relacionou com o daimonion nem mesmo a sua opção moral de fundo, que, no entanto, ele considera provir de uma ordem divina: “Cabe-me fazer isto (fazer filosofia e exortar os homens a cuidarem da alma) porque fui ordenado por Deus, com vaticínios e sonhos, em suma, com qual­quer daqueles modos pelos quais a sorte divina ordena, por vezes, o homem a fazer alguma coisa.” Já o daimonion não lhe “ordenava”, mas lhe “vetava”.
Excluídos os campos da filosofia e da opção ética de fundo, resta apenas o campo dos eventos e ações particulares. E é exata­mente a esse campo que se referem todos os textos à disposição sobre o daimonion socrático. Trata-se, portanto, de um fato que diz respeito ao indivíduo Sócrates e aos acontecimentos particulares de sua existência: era um “sinal” que, como dissemos, o impedia de fazer coisas particulares que lhe teriam acarretado prejuízos. A coisa da qual o afastou mais firmemente foi a participação ativa na vida política, sobre o que ele diz: “Vós o sabeis bem, atenienses, que, se há tempos eu me houvesse metido a ocupar-me dos negócios do Estado (coisa da qual o demônio me afasta), há tempos eu já estaria morto e não teria feito nada de útil, nem para vós nem para mim.”
Em suma, o daimonion é algo que diz respeito à excepcional personalidade de Sócrates, devendo ser colocado no mesmo plano de certos momentos de concentração muito intensa, bastante próximos aos arrebatamentos de êxtase em que Sócrates mergu­lhava algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual nossas fontes falam expressamente. Portanto, o daimonion não deve ser relacionado com o pensamento e a filosofia de Sócrates: ele próprio manteve as duas coisas distintas e separadas—e o mesmo deve fazer o intérprete.

terça-feira, 30 de abril de 2019


Apologia de Sócrates 
por Platão 
Tradução de Maria Lacerda de Souza. 
Primeira Parte - Sócrates apresenta sua defesa 
O que vós, cidadão atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus 
acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de 
mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram, eu 
o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que
divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram 
que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como 
homem hábil no falar. Mas, então, não se envergonham disto, de que logo seriam desmentidos 
por mim, com fatos, quando eu me apresentasse diante de vós, de
nenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência, 
se, todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade. 
Porque, se dizem exatamente isso, poderei confessar que sou orador, 
não porém à sua maneira. 
Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada
disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua 
plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadão
atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou
adornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente com as
palavras que me vieram à boca; pois estou certo de que é justo o que 
eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa. Em verdade, nem
conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó cidadãos, 
como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E todavia, cidadãos 
atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo 
com os mesmos discursos com os quais costumo falas nas feiras, perto 
dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, 
não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. Porquanto, há o 
seguinte: é a primeira vez que me apresento diante de um tribunal, na 
idade de mais de setenta anos: por isso, sou quase estranho ao modo de 
falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro, seu dúvida,
perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse sido educado; assim também agora vos peço uma coisa que me parece justa: 
permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior 
ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção 
a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de fato, é a virtude do juiz, 
do orador - dizer a verdade. 
II 
É justo, pois, cidadão atenienses, que em primeiro lugar, eu me
defenda das primeiras e falsas acusações que me foram apresentadas, e 
dos primeiros acusadores; depois, me defenderei das últimas e dos
últimos. Porque muitos dos meus acusadores tem vindo até vós já
bastante tempo, talvez anos, e sem jamais dizerem a verdade; e esses eu 
temo mais do que Anito e seus companheiros, embora também sejam 
temíveis os últimos. Mais temíveis porém são os primeiros, ó
cidadãos, os quais tomando a maior parte de vós, desde crianças, vos 
persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo-vos que há um tal
Sócrates, homem douto, especulador das cosias celestes e investigador 
das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca. Esses,
cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que 
eu temo; pois aqueles que os escutam julgam que os investigadores de 
tais coisas não acreditam nem mesmo nos deuses. Pois esses
acusadores são muito e me acusam já há bastante tempo; e, além disso, 
vos falavam naquela idade em que mais facilmente podíeis dar crédito, 
quando éreis crianças e alguns de vós muito jovens, acusando-me com 
pertinaz tenacidade, sem que ninguém me defendesse. E o que é mais 
absurdo é que não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto, 
talvez, algum comediógrafo. 
Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos persuadiam, e os que, 
convencidos, procuravam persuadir os outros, são todos, por assim
dizer, inabordáveis; porque não é possível fazê-los comparecer aqui, 
nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase 
combatendo com sombras e destruir, sem que ninguém responda. 
Admiti, também vós, como eu digo, que os meus acusadores são de 
duas espécies, uns, que me acusaram recentemente, outros, há muito 
dos quais estou falando e convinde que devo me defender
primeiramente destes, porque também vós os ouviste acusar-me em 
primeiro lugar e durante muito mais tempo que os últimos. Ora bem, cidadãos atenienses, devo defender-me e empreender remover 
de vossa mente, em tão breve hora, a má opinião acolhida por vós 
durante muito tempo. 
Certo eu desejaria consegui-lo, e seria o melhor, para vós e para mim, 
se, defendendo-me, obtivesse algum proveito; mas vejo a coisa difícil, 
e bem percebo por quê. De resto, seja como deus quiser: agora é
preciso obedecer à lei e em defender. 
III 
Prossigamos, pois, e vejamos, de início, qual é a acusação, de onde 
nasce a calúnia contra mim, baseado no qual Meleto me moveu este 
processo. 
Ora bem, que diziam os caluniadores ao caluniar-me? É necessário ler 
a ata da acusação jurada por esses tais acusadores: - Sócrates comete 
crime e perde a sua obra, investigando as coisas terrenas e as
celestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando isso 
aos outros. - Tal é , mais ou menos, a acusação: e isso já vistes, vós 
mesmos, na comédia de Aristófanes, onde aparece, aqui e ali, um
Sócrates que diz caminhar pelos ares e exibe muitas outras tolices, das 
quais não entendo nem muito, nem pouco. 
E não digo isso por desprezar tal ciência, se é que há sapiência nela, 
mas o fato é, cidadão atenienses, que, de maneira alguma, me ocupo de 
semelhantes coisas. E apresento testemunhas: vós mesmos, e peço vos 
informei reciprocamente, mutuamente vos interrogueis, quantos de vós 
me ouviram discursar algum dia; e muitos dentre vós são desses.
Perguntai-vos uns aos outros se qualquer de vós jamais me ouviu orar, 
muito ou pouco, em torno de tais assuntos, e então reconhecereis que 
tais são. do mesmo modo, as outras mentiras que dizem de mim. 
IV 
Na realidade, nada disso é verdadeiro, e , se tendes ouvido de alguém 
que instruo e ganho dinheiro com isso, não é verdade. Embora, em 
realidade, isso me pareça bela coisa: que alguém seja capaz de instruir 
os homens, como Górgias Leontino, Pródico de Coo, e Hípias de
Élide. Porquanto, cada um desses, ó cidadãos, passando de cidade em 
cidade, é capaz de persuadir os jovens, os quais poderiam conversar 
gratuitamente com todos os cidadãos que quisessem; é capaz depersuadir a estar com eles, deixando as outras conversações,
compensado-os com dinheiro e proporcionando-lhes prazer. 
Mas aqui há outro erudito de Paros, o qual eu soube que veio para 
junto de nós, porque encontrei por acaso um que despendeu com os 
sofistas mais dinheiro que todos os outros juntos, Cálias de Hipônico. 
tem dois filhos e eu o interroguei: - Cálias, se os teus filhinhos fossem 
poldrinhos ou bezerros, deveríamos escolher e pagar para eles um
guardião, o qual os deveria aperfeiçoar nas suas qualidades inerentes: 
seria uma pessoa que entendesse de cavalos e de agricultura. Mas,
como são homens, qual é o mestre que deves tomar para eles? Qual é o 
que sabe ensinar tais virtudes, a humana e a civil? Creio bem que tens 
pensador nisso uma vez que tem dois filhos. Haverá alguém ou não ? -
Certamente! - responde. E eu pergunto: - Quem é, de onde e por
quanto ensina? Eveno, respondeu, de Paros, por cinco minas. - E eu 
acreditaria Eveno muito feliz, se verdadeiramente possui essa arte e a 
ensina com tal garbo. Mas o que é certo é que também eu me sentiria 
altivo e orgulhoso, se soubesse tais coisas; entretanto, o fato é,
cidadãos atenienses, que não sei. 
Algum de vós, aqui, poderia talvez se opor a mim: - Mas Sócrates, que 
é que fazes? De onde nasceram tais calunias? Se não tivesses te
ocupado em coisa alguma diversa das coisas que fazem os outros, na 
verdade não terias ganho tal fama e não teriam nascido acusações.
Dizes, pois, o que é isso, a fim de que não julguem a esmo. 
Quem diz assim, parece-me que fala justamente, e eu procurarei
demonstrar-vos que jamais foi essa a causa produtora de tal fama e de 
tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa parecer a algum de vós que eu 
esteja gracejando; entretanto, sabei-o bem, eu vos direi toda a verdade. 
Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por
alguma sabedoria. Que sabedoria é essa? Aquela que é, talvez
propriamente, a sabedoria humana. É, em realidade, arriscado ser sábio 
nela: mas aqueles de quem falávamos ainda há pouco seriam sábios de 
uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer, porque certo 
não a conheço. Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueis
contra mim, ainda que vos pareça que eu diga qualquer coisa absurda: 
pois que não é meu o discurso que estou por dizer, mas refiro-me a outro que é digno de vossa confiança. Apresento-vos, de fato, o deus 
de Delfos como testemunha de minha sabedoria, se eu a tivesse, e
qualquer que fosse. Conheceis bem Xenofonte. Era meu amigo desde 
jovem, também amigo do vosso partido democrático, e participou de 
vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como era
Xenofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de 
fato, indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo a respeito disso e - não 
façais rumor, por isso que digo - perguntou-lhe, pois, se havia alguém 
mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém 
mais sábio. E a testemunha disso é seu irmão, que aqui está. 
VI 
Considerai bem a razão por que digo isso: estou para demonstra-vos de 
onde nasceu a calúnia. Em verdade, ouvindo isso, pensei: que queria 
dizer o deus e qual é o sentido de suas palavras obscuras? Sei bem que 
não sou sábio, nem muito nem pouco: o que quer dizer, pois,
afirmando que sou o mais sábio? Certo não mente, não é possível. E 
fiquei por muito tempo em dúvida sobre o que pudesse dizer; depois 
de grande fadiga resolvi buscar a significação do seguinte modo: Fui a 
um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por 
meio dele, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha 
resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu sou o 
mais sábio. Examinando esse tal: - não importa o nome, mas era,
cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava 
essa impressão. - e falando com ele, afigurou-se-me que esse homem 
parecia sábio a muitos outros e principalmente a si mesmo, mas não 
era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí 
me veio o ódio dele e de muitos dos presentes. Então, pus-me a
considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse 
homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e 
bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, 
enquanto eu, como não si nada, também estou certo de não saber.
Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja 
pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei. Depois desse, fui a 
outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e me
pareceu que todos são a mesma coisa. Daí veio o ódio também deste e 
de muitos outros. VI 
Depois prossegui se mais me deter. embora vendo, amargurado e
temeroso, que estava incorrendo em ódio; mas também me parecia
dever fazer mais caso da resposta do deus. Para procurar, pois o que 
queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam saber 
qualquer coisa. E então, cidadãos atenienses, já que é preciso dizer a 
verdade, me aconteceu o seguinte: procurando segundo o dedo do 
deus, pareceu-me que os mais estimados eram quase privados do
melhor, e que, ao contrário, os outros, reputados ineptos, eram homens 
mais capazes, quando à sabedoria. 
Ora, é preciso que eu vos descreva os meus passos, como de quem se 
cansava para que o oráculo se tornasse acessível a mim. Depois dos 
políticos, fui aos poetas trágicos, e, dos ditirâmbicos fui aos outros, 
convencido de que, entre esses, eu seria de fato apanhado como mais 
ignorante do que eles. Tomando, pois, os seus poemas, dentre os que 
me pareciam os mais bem feitos, eu lhes perguntava o que queriam 
dizer, para aprender também alguma coisa com eles. 
Agora, ó cidadãos, eu me envergonho de vos dizer a verdade; mas
também devo manifestá-la. Pois que estou para afirmar que todos os 
presentes teriam discorrido sobre tais versos quase melhor do que
aqueles que os haviam feito. 
Em poucas palavras direi ainda, em relação aos trágicos, que não
faziam por sabedoria aquilo que faziam, mas por certa natural
inclinação, e intuição, assim como os adivinhos e os vates; e em
verdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo 
que dizem. O mesmo me parece acontecer com os outros poetas; e 
também me recordo de que eles, por causa das suas poesias,
acreditavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas, nas
quais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso eu os 
superava, pela mesma razão que superava os políticos. 
VIII 
Por fim, também fui aos artífices, porque estava persuadido de que por 
assim dizer nada sabiam, e, ao contrário, tenho que dizer que os achei 
instruídos em muitas e belas coisas. Em verdade, nisso me enganei: 
eles, de fato. sabiam aquilo que eu não sabia e eram muito mais sábios 
do que eu. Mas, cidadãos atenienses, parece-me que também osartífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar 
bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas 
outras coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber. 
Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a respeito do que disse o 
oráculo, se devia mesmo permanecer como sou, nem sábio da sua
sabedoria, nem ignorante da sua ignorância, ou ter ambas as coisas, 
como eles o tem. 
Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me convém ficar como 
sou. 
IX 
Ora, dessa investigação, cidadãos atenienses, me vieram muitas
inimizades e tão odiosas e graves que delas se derivaram outras tantas 
calúnias e me foi atribuída a qualidade de sábio; pois que, a cada
instante, os presentes acreditam que eu seja sábio naquilo que refuto os 
outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia ser sábio de 
verdade, ao dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ou 
nenhum preço; e parece que não tenha querido dizer isso de Sócrates, 
mas que se tenha servido do meu nome, tomando-me por exemplo, 
como se dissesse: Aqueles dentre vós, ó homens, são sapientíssimos os 
que, como Sócrates, tenham reconhecido que em realidade não tem 
nenhum mérito quanto à sabedoria. 
Por isso, ainda agora procuro e investigo segundo a vontade do deus, 
se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e quando não, 
indo em auxílio do deus, demonstro-lhe que não é sábio. E, ocupado 
em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada de nada de 
apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, mas
encontro-me em extrema pobreza, por causa do serviço do deus. 
Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo-me 
espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas 
vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os 
outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam 
saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são 
examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e 
dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E 
quando alguém os pergunta o que é que ele faz e ensina, não tem nada 
o que dizer, pois ignoram. Para não parecerem embaraçados, dizem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos: que 
ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a 
tornar mais forte a razão mais débil. Sim, porque não querem, ao meu 
ver, dizer a verdade, isto é, que descobriram a presunção de seu saber, 
quando não sabem nada. Assim, penso, sendo eles ambiciosos e
resolutos e em grande número, e falando de mim concordemente e
persuasivamente, vos encheram os ouvidos caluniando-me de há muito 
tempo e com persistência. Entre esses, arremessaram-se contra mim 
Meleto, Anito e Licon: Meleto pelos poetas, Anito pelos artífices,
Licon pelo oradores. De modo que, como eu dizia no princípio, ficaria 
maravilhado se conseguisse, em tão breve tempo, tirar do vosso ânimo 
a força dessa calúnia, tornada tão grande. 
Eis a verdade, cidadãos atenienses, e eu falo sem esconder nem
dissimular nada de grande ou de pequeno. 
Saibam, quantos o queiram, que por isso sou odiado; er que digo a 
verdade, e que tal é a calúnia contra mim e tais são as causas. E tanto 
agora como mais tarde ou em qualquer tempo, podereis considerar
essas coisas: são como digo. 
X É suficiente, pois. esta minha defesa diante de vós, contra a acusação 
movida a mim pelos primeiros acusadores. Agora procurarei defenderme de Meleto, homem de bem e amante da pátria, como dizem, e um 
dos últimos acusadores. Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado por ele, como por
outros acusadores. É mais ou menos assim: 
-Sócrates - diz a acusação - comete crime corrompendo os jovens e 
não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, 
porém outras divindades novas.- Esta é a acusação. Examinemo-la 
agora, em todos os seus vários pontos. Diz, primeiro, que cometo 
crime, corrompendo jovens. Ao contrário, eu digo, cidadãos
atenienses, Meleto é quem comete crime, porque brinca com as coisas 
graves. Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal,
aparentando ter cuidado e interesse por coisas em que de fato nunca 
pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem assim. 
XI Agora, dize-me, Meleto: não é verdade que te importa bastante que os 
jovens se tornem cada vez melhores, tanto quanto possível? 
-Sim, é certo. 
-Vamos, pois, dize-lhes quem os torna melhores; é claro que tu o deves 
saber, sendo coisa que te preocupa, tendo de fato encontrado quem os 
corrompe, como afirmas, uma vez que me trouxeste aqui e me acusa. 
Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas 
e não sabes o que dizer. E, ao contrário não te parece vergonhoso e 
suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em 
nada disso? Mas, dizes, homem, de bem, quem os torna melhores? 
-As leis. 
- Mas não pergunto isso, ótimo homem, mas qual o homem que sabe, 
em primeiro lugar, isso exatamente, as leis. 
- Aqueles, Sócrates, os juízes. 
- Como, Meleto, esses são capazes de educar os jovens e os tornar 
melhores? 
-Como não? 
-Todos, ou alguns apenas, outros não? 
- Todos. 
- Muito bem respondido, por Hera: Vê quanta abundância de pessoas 
úteis! Como ? Também estes, que nos escutam, tornam melhores os 
jovens ou não? 
- Também estes. 
-E os senadores? 
-Também os senadores. 
- É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos da
Assembléia, ou também todos esses os tornam melhores? 
- Também esses. 
-Assim, pois, todos os homens, como parece, tornam melhores os
jovens, exceto eu. Só eu corrompo os jovens. Não é isso? 
- Isso exatamente afirmo de modo conciso. 
- Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será 
assim também para os cavalos? que aqueles que os tonam melhores 
são todos homens e que só um os corrompe? ou será o contrário, que 
um só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que
entendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los, os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os 
animais? Sim, certamente, ainda que tu e Anito o neguem ou afirmem. 
Pois seria uma grande fortuna para os jovens que um só corrompesse e 
os outros lhe fossem todos úteis. Mas, na realidade, Meleto, mostraste 
o suficiente que jamais te preocupaste com os jovens, e claramente 
revelaste o teu desmazelo, que nenhum pensamento te passou pela
mente, disto que me acusas. 
XII 
- E , agora, dize-me, por Zeus, Meleto: que é melhor, viver entre
virtuosos cidadãos ou entre malvados? Responde, meu caro, não te 
pergunto uma coisa difícil. Não fazem os malvados alguma maldade 
aos que são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons? 
- Certamente. 
- E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado opor aqueles 
que estão com ele? Responde, porque também a lei manda responder. 
Há os que gostam de ser prejudicados. 
-Não,por certo. 
-Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os 
torna piores, voluntariamente ou involuntariamente? 
- Para mim, voluntariamente. 
- Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio do que eu, tão velho, 
sabendo que os maus fazem sempre mal aos mais próximos e os bons 
fazem bem: eu, pois, cheguei a tal grau de ignorância que não si nem 
isso, que se tornasse maus alguns daqueles que estavam comigo,
correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mau, 
como dizes. Não te creio, Meleto, quanto a isso, e ninguém te acredita, 
penso. 
Mas. ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é involuntariamente, e 
em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente, 
não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatos
involuntários, mas há as que mandam conduzi-lo em particular,
instruindo-o, advertindo-o; é claro que se me convencer, cessarei de 
fazer o que estava fazendo sem querer. Tu. ao contrário, evitaste
encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a 
lei ordena citar aqueles que tem necessidade de pena e não de
instrução. XIII 
Mas, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse. 
Jamais Meleto prestou atenção a tais coisas, nem muita, nem pouca. 
Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo
corrompo os jovens. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, 
que ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém,
outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais 
coisas? 
-Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso. 
- Assim, pois, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora está 
falando, fala ainda mais claro, a mim e aos outros. Não consigo
entender se dizes que eu ensino a creditar que existem certos deuses - e 
em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou 
culpado de tal erro - mas não são os da cidade, porém outros, e disso 
exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou 
dizes que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino 
isso aos outros? 
- Eu digo isso, que não acreditas inteiramente nos deuses. 
- Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo 
modo que os outros homens, que o sol e a lua são deuses? 
-Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a 
lua, terra. 
- Tu acreditas acusar Anáxagoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e 
me consideras tão privado de letras a ponto de não saber que os livros 
de Anáxagoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo 
que os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez,
pagando todos no máximo uma dracma, rir-se de Sócrates, quando se 
lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus, 
assim te parece, que eu creio que não exista nenhum deus? 
-Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo. 
- És de certo, indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece, 
tais coisas são inacreditáveis. Porque este homem, cidadãos atenienses, 
me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente escreveu 
essa acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato 
ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga, 
interrogando-se a si mesmo: Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros 
que me ouvem? E, ao contrário, me parece que, no ato da acusação, se 
contradiz de propósito, como se dissesse: Sócrates comete crime, não 
acreditando nos deuses, mas acreditando nos deuses. E isso, na verdade 
é fazer zombaria.] 
XIV 
- Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele 
diz isso. Responde-nos tu, Meleto, e vós, como pedi a princípio, não 
façais rumor contra mim, se conduzo o raciocínio desse modo.
Existem entre os homens, Meleto, os que acreditam que há coisas
humanas, que não há homens? Que responda ele, ó juízes, sem
resmungar ora uma coisa ora outra. Há os que acreditam que não há 
cavalos, e coisas que tenham relação com os cavalos sim? Ou
acreditam que não há flautistas, e coisas relativas à flauta sim? Não 
há? Ótimo homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos 
outros presentes. Mas, ao menos, responde a isto: Há quem acredite 
que há coisas demoníacas, e demônios não? 
- Não há. 
-Oh! como estou contente que tenhas respondido de má vontade,
constrangido por outros! Tu dizes. pois, que eu creio e ensino coisas 
demoníacas, sejam novas, sejam velhas; portanto, segundo o teu
raciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o juraste na tua
acusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, certo é
absolutamente necessário que eu creia também na existência dos
demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o admites, porque 
não respondes. E não temo em apreço os demônios como deuses ou 
filho de deuses? Sim, ou não? 
- Sim, é certo. 
- Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se os
demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não
acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses,
porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, por outra parte, 
os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras 
mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia 
ter a certeza de que são filhos dos deuses se não existem deuses? Seria 
de fato do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas, filas de cavalos e das jumentas, e acreditassem não existirem cavalos e 
asnos. Mas, Meleto, tua acusação foi feita para me pôr à prova, ou 
também por não saber a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por 
que, pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente restrita, 
de que pode a mesma pessoa acreditar na existência das coisas
demoníacas e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admitir
demônios, nem deuses, nem heróis? Isso não é possível. 
XV 
Em realidade, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu, 
segundo a acusação de Meleto, não me parece ser necessária longa
defesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no princípio, que há 
muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é verdade. 
E isso é o que me vai perder, se eu me perder ... e não Meleto, ou 
Anito, mas, a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se
perderam muitos outros homens virtuosos, e outros ainda, creio, serão 
perdidos; não há perigo que a série se feche comigo. Mas talvez
pudesse alguém dizer: Não te envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a 
tais ocupações, pelas quais agora está arriscado a morrer? A isso, porei 
justo raciocínio, e é o seguinte: não estás falando bem, meu caro, se 
acreditas que um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja, 
deve fazer caso dos riscos de viver ou morrer, e , ao contrário, só deve 
considerar uma coisa: quando fizer o que quer que seja, deve
considerar se faz coisa justa ou injusta, se está agindo como homem 
virtuoso ou desonesto. Porquanto, segundo a tua opinião, seriam
desprezíveis todos aqueles semi-deuses que morreram em Tróia. E, 
com eles, o filho de Tétis, o qual, para não sobreviver à vergonha, 
desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar Heitor, não deu 
ouvido à predição de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe deve ter 
dito mais ou menos isto: -Filho, se vingares a morte de teu amigo 
Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente 
depois de Heitor, o teu destino estará terminado. - Ouviu tais
palavras, não fez nenhum caso da morte e dos perigos, e, temendo muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: Morra eu 
imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça 
aqui como objeto de riso, junto das minhas naus recurvas inútil 
fardo da terra. Crês que tenha feito caso dos perigos e da morte? 
Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer que
alguém tenha colocado, reputando o melhor posto, ou se for ali
colocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de ir firme ao 
encontro dos perigos, sem se importar com a morte ou com coisa
alguma, a não ser com as torpezas. 
XVI 
Gravíssimo erro deveria considerar, cidadãos atenienses, quando os
comandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me assinalaram um 
posto em Potidéia, em Anfípolo, em Délio, não ter ficado eu onde me 
colocaram como qualquer outro e correndo perigo de morte. Quando, 
pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu 
devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros,
então eu, se temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesse
abandonado o meu posto, isso seria deveram intolerável. Nesse caso, 
com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de 
não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e 
temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser. 
Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter 
sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe.
Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos 
os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se
soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão 
ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não 
se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior 
parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do 
Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é 
melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem. isso é que é mal 
e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por 
acaso, são boas ou más. Anito disse que, ou não se devia, desde o 
princípio, trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram não é
possível deixarem de me condenar à morte, afirmando que, se eu me 
salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os ensinamentos de Sócrates, estariam de fato corrompidos. Mas, se me absolvêsseis, não 
cedendo a Anito, se me dissésseis: Sócrates, agora não damos crédito a 
Anito, mas te absolveremos, contando que não te ocupes mais dessas 
tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fazer 
isso, morrerás; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria: 
- Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos 
deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na 
posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar 
ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença, 
dizendo-lhe, como é meu costume: - Ótimo homem, tu que és cidadão 
de Atenas, da cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não 
te envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais 
puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te 
importares de sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez 
melhor? 
E, se algum de vós protestar e prometer cuidar , não o deixarei já, nem 
irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em 
qualquer momento que pareça que não possui virtude, convencido de 
que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das coisas de 
grandíssima importância e grande caso das parvoíces. E isso o farei 
com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho,
forasteiro ou cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me 
sejam vizinhos por nascimento. 
Isso justamente é o que me manda o deus, e vós o sabeis, e creio que 
nenhum bem maior tendes na cidade, maior que este meu serviço do 
deus. 
Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se 
preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e 
com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela 
seja quanto possível melhor, e vou dizendo que a virtude não nasce da 
riqueza, mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros 
bens, tanto públicos como privados. 
Se, falando assim, eu corrompo os jovens, tais raciocínios são
prejudiciais; mas se alguém disser que digo outras coisas que não 
essas, não diz a verdade. Por isso vos direi, cidadãos atenienses, quesecundado Anito ou não, absolvendo-me ou não, não farei outra coisa, 
nem que tenha de morrer muitas vezes. 
VII 
Não façais rumor, cidadãos atenienses, mas perseverai no que vos
estou dizendo, isto é, não vocifereis pelas coisas que vos digo, mas 
ouvi-me; pois escutando-me, penso que tirareis proveito. 
Aqui estou para vos dizer algumas outras coisas, e talvez, por isso, 
levantareis a voz, mas não o deveis fazer. Sabei-o bem: se me
condenais a morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis 
maior dano a mim que vós mesmos. E, de fato, nem Meleto, nem Anito 
me poderiam fazer mal em coisa em alguma: isso jamais seria possível, 
pois que não pode acontecer que um homem melhor receba dano de 
um pior. É possível que me mandem matar, ou me exilem, ou me
tolham os direitos civis; mas provavelmente, eles ou quaisquer outros 
reputam tais coisas como grandes males, ao passo que eu não
considero assim, e, ao contrário considero muito maior mal fazer o 
que agora eles estão fazendo, procurando matar injustamente um
homem. 
Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe de me defender por 
amor a mim mesmo, como alguém poderia supor, mas por amor a vós, 
para que, condenando-me, não tenhais de cometer o erro de repelir o 
dom de mim que vos fez o deus. Pois que, se me mandares matar, não 
encontrareis facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo dizê-lo) 
tenha sido adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo com a um 
cavalo grande e de pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é 
aplicada a necessária esporada para sacudi-lo. assim justamente me 
parece que o deus me aplicou à cidade, de maneira que, despertando 
cada um de vós e persuadindo-vos e desaprovando-vos, não deixo de 
vos esporar os flancos, por toda a parte, durante todo o dia. 
E outro parecido, não tereis tão facilmente, cidadãos. Mas, se me
ouvísseis me pouparíeis. É possível que vós irritados como aqueles 
que são despertados quando no melhor do dono, repelindo-me para 
condescender com Anito, levianamente me condeneis à morte, para
dormirdes o resto da vida, se, entretanto, o deus, pensando em vós, não 
vos mandar algum outro.Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser um dom feito pelo 
deus à cidade podereis deduzir do seguinte: não é, na verdade, do 
homem, eu ter descuidado das minhas coisas, resignando-me por tantos 
anos a me descuidar dos negócios domésticos para acudir sempre aos 
vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particular
como um pai ou irmão mais velho, persuadindo-vos a vos
preocupardes com a virtude? Se, em verdade, disto eu obtivesse
qualquer coisa e recebesse compensação de tais advertências, teria uma 
razão. Mas agora vós mesmos vedes que os acusadores, tendo acusado 
a mim, com tanta imprudência, de tantas outras coisas, não foram
capazes de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou 
pedido alguma recompensa. 
Pois bem; apresento um testemunho suficiente do que digo: a minha 
pobreza. 
XVIII 
Mas, poderia talvez parecer estranho que eu, andando daqui para lá, me 
cansasse dando em particular esses conselhos, e depois, em público, 
não ousasse, subindo diante do vosso povo aconselhar a cidade. A
causa disso é a que em várias circunstâncias, eu vos disse muitas
vezes: a mim me acontece qualquer coisa de divino e demoníaco; isso 
justamente Meleto escreveu também no ato da acusação, zombando de 
mim mim. E tal fato começou comigo em criança. Ouço uma voz, e 
toda vez que isso acontece ela me desvia do que estou a pique de fazer, 
mas nunca me leva à ação. Ora, é isso que me impede de me ocupar 
dos negócios do Estado. E até me parece que muito a propósito mo 
impede, porquanto, sabei-o bem, cidadãos atenienses, se eu, há muito 
tempo, tivesse empreendido ocupar-me com os negócios do Estado há 
muito tempo já estaria morto, e não teria sido útil em nada, nem a vós, 
nem a mim mesmo. 
E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não há nenhum 
homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou a
qualquer outro povo, e impedir que muitos atos contrários à justiça e 
às leis se pratique na cidade. E não há outro caminho: quem combate 
verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo, 
deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos. Disso vos poderei dar grandes provas, não palavras, mas o que prezei: 
fatos. Ouvi, pois, de minha boca, o que me aconteceu, para que não 
saibais que não há ninguém a quem eu tenha feito concessões com 
desprezo da justiça e por medo da morte; e que, ao mesmo tempo, por 
essa recusa de toda concessão deverei morrer. Dir-vos-ei talvez coisas 
comuns e pedantescas, mas verdadeiras. De fato, cidadãos atenienses, 
não tenho mais nenhum cargo público na cidade, mas fui senador, e e, 
à nossa Antiquóida coube por sorte a Pritânia, quando quisestes que 
aqueles dez estrategistas, que não haviam recolhidos os mortos e os 
náufragos da batalha naval, fossem julgados coletivamente, contra a 
lei, no que todos vós conviestes. Então somente eu, dos pritanos, me 
opus a vós, não querendo agir em oposição à lei ,e votei contra. E, 
embora os oradores estivessem prontos a me acusar e me prender, e 
vós os encorajásseis vociferando, mesmo assim, achei que me
convinha mais correr perigo com a lei e com o que era justo, do que, 
por medo do cárcere e da morte, estar convosco, vós que deliberáveis o 
injusto. 
Isso acontecia quando a cidade era ainda governada pela democracia. 
Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me chamado, 
em quinto lugar, ao Tolo, orderam-me que fosse à Salamina buscar o 
Leão Salamínio, para que fosse morte. Muitos fatos desse gênero
tinham sido ordenados a muitos outros, com o fim de cobrir de
infâmia quanto pudessem. Também naquele momento, não com
palavras mas com fatos, demonstrei de novo que a morte não me
importava, ou me importava menos que um figo, eu diria se não fosse 
indelicado dizê-lo. Mas não fazer nada de injusto e de ímpio isso sim, 
me importa acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento, 
não me intimidou, para que fizesse alguma injustiça; mas quando
saímos de tolo, os outros quatro foram à Salaminas e trouxeram Leão, 
e eu, ao contrário, afastei-me deles e fui para casa. Naquela ocasião, eu 
teria sido morto, se o governo não fosse derrubado pouco depois. E 
disso tendes testemunhas em grande número 
XIX 
Ora, julgais que eu teria vivido tantos anos, se me tivesse aplicado aos 
negócios públicos, e procedendo como homem de bem, tivesse
defendido as coisas justas, e, como deve ser, tivesse dado a isso maior importância? Muito longe disso, cidadãos atenienses; na verdade,
também nenhum outro se teria salvo! Eu, porém, durante toda a minha 
vida, se fiz alguma coisa, em público ou em particular, vos apareço 
sempre o mesmo, não tendo jamais concedido coisa alguma contra a 
justiça nem aos outros nem a algum daqueles que meus caluniadores 
chamam de meus discípulos. 
Mas nunca fui mestre de ninguém: de, pois, alguém mostrou desejoso 
da minha presença quando eu falava, e acudiam à minha procura jovens 
e velhos, nunca me recusei a ninguém. Nunca, ao menos, falei de
dinheiro; mas igualmente me presto a me interrogar os ricos e os
pobres, quando alguém, respondendo, quer ouvir o que digo. e se
algum deles se torna melhor, ou não se torna não posso ser
responsável, pois que não prometi, nem dei, nesse sentido, nenhum
ensinamento. E, se alguém afirmar que aprendeu ou ouviu de mim, em 
particular, qualquer coisa de diverso do que disse a todos os outros, 
sabei bem que não diz a verdade. 
XX 
Entretanto, como pode acontecer que alguns se comprazam em passar 
muito tempo comigo? Já ouvistes, cidadãos atenienses, eu já vos disse 
toda a verdade: é porque tomam gosto em ouvir examinar aqueles que 
acreditam ser sábio e não o são; não é de fato coisa desagradável. E, 
como disse, foi o deus que me ordenou a fazê-lo, com oráculos, com 
sonhos, e com outros meios, pelos quais algumas vezes a divina a
vontade ordena a um homem que faça o que quer que seja. 
Tudo isso, cidadãos atenienses, é verdade e fácil de provar. Com efeito, 
suponhamos que, entre os jovens, há alguns que estou corrompendo e 
outros que já corrompi: seria aparentemente inevitável que alguns
destes, quando tiveram mais idade, compreendessem que eu lhes tinha 
alguma vez aconselhado uma ação má - e hoje deveriam estar aqui para 
me acusar e vingar-se de mim. Suponhamos ainda, que eles não teriam 
querido vir pessoalmente: mesmo assim, alguns de seus parentes, pais, 
irmãos ou pessoas de família, se algum dia receberam danos de minha 
parte, agora deveriam recordar e tirar vingança. 
Mas eis que vejo aqui presentes muitos desses: primeiro Críton, meu 
coevo e do mesmo demos, pai de Critóbulo; depois Lisânias Sfécio, 
pai de Epígenes, além destes outros cujos irmãos estiveram comigo na intimidade: Nicostrato, filho de Teozóides e irmão de Teodoto (e
Teodoto, que já é falecido, não poderia impedir Nicostrato de falar 
contra mim). E há ainda, Paralo de Demócodo, irmão de Teageto, do 
qual é irmão Platão, e Aiantádoro, de que é irmão Apolodoro. E
muitos outros eu poderia citar, alguns dos quais especialmente
deveriam ter sido apresentados por meleto como testemunhas, no seu 
discurso. Mas, se agora se esquivam, aos presentes aqui eu lhes
permito dizerem se há qualquer coisa dessa natureza. Mas vós, ó
juízes, sois de parecer contrário, achareis que todos estão prontos a me 
ajudar; mas incorruptíveis homens já de idade avançada, parentes
daqueles, que razão teriam para me ajudar senão aquela, reta e justa, 
convencidos de que Meleto mente e que eu digo a verdade? 
XXI 
Assim seja, ó cidadãos: é mais ou menos isso que eu poderei dizer em 
minha defesa ou qualquer coisa semelhante. Provavelmente, porém,
algum de vós poderá ficar encolerizado, recordando-se de si mesmo. 
Se sustentou uma contenda embora em menor proporções do que essa 
minha, pediu e suplicou aos juízes, com muitas lágrimas, trazendo 
aqui os filhos, e muitos outros parentes e amigos, a fim de mover a 
piedade ao seu favor. Eu não farei certamente nada disso, embora vá ao 
encontro, como se pode acreditar, do extremo perigo. É possível que 
qualquer um, considerando isso, pudesse irritar-se contra mim, e,
encolerizado por isso mesmo, desse o voto com ira. Se, de fato, algum 
de vós está em está em tal estado de alma, a mim me parece que
poderei dizer-lhe o seguinte: Também eu, meu caro, tenho uma
família, e bem posso, como em Homero, dizer que não nasci: "de um 
carvalho nem de um rochedo", pois eu também tenho parentes e
filhinhos, ó cidadãos atenienses: três, um já jovenzinho e duas
meninas; mas contudo, não farei vir aqui nenhum deles para vos rogar 
a minha absolvição. 
Porque razão não farei nada disso? Não é por soberbia, ó atenienses, 
nem por desprezo que eu tenha por vós, mas que eu seja corajoso ao 
menos defronte a morte, isto é outra coisa. Tratando-se de honra, não 
me parece belo, nem para mim nem para vós, pata toda cidade, que eu 
faça tal, na idade em que estou, e com este nome de sábio que me dão, 
seja ele merecido ou não. O fato é que me foi criada a fama de ser esteSócrates em quem há alguma coisa pela qual se tona superior à maioria 
dos homens. Ora, se aqueles que entre nós, tem a reputação de ser 
superiores aos demais, pela sabedoria, pela coragem, ou por qualquer 
outro mérito procedessem de tal modo, seria bem feito. 
Freqüentemente já notei essa atitude, quando são elas julgadas, em
pessoas que, malgrado a reputação de homens de valor que tem, se 
entregam a extraordinárias manifestações, inspiradas pela idéia de que 
será coisa terrível ter de morrer: como se, no caso em que vós não o 
mandásseis à morte, devessem eles ser imortais. São esses homens que, 
a meu ver, cobrem a cidade de vergonha, e que poderiam suscitar entre 
os estrangeiros a convicção de aqueles que os próprios atenienses 
escolheram, de preferência, para serem os seus magistrados e para as 
demais dignidades, não se diferenciem das mulheres! 
É um procedimento, atenienses, que não deverá ser o vosso, quando 
possuirdes reputação em qualquer gênero de valor que seja; e que não 
deveis permitir seja o meu, caso eu tenha alguma reputação, pois o que 
deveis fazer é justamente que se compreenda isto: que aquele que se 
apresenta no tribunal representando estes dramas lamentáveis será mais 
certamente condenado por vós do que o que permanece tranqüilo. 
XXII 
Mas mesmo não fazendo caso da reputação, ó cidadãos, não me parece 
também justo suplicar aos juízes e evitar a condenação com rogos, mas 
iluminá-los e persuadi-los. Que o juiz não ceda já por isso, não
dispense sentença a favor, mas a pronuncie retamente e jure
condescender com quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis. Por 
isso, nem nós devemos habituar-vos a proceder contra o vosso
juramento, nem vós deveis permitir que nos habituemos a fazê-lo. 
Não espereis, cidadãos atenienses, que eu seja constrangido a fazer, 
diante de vós, coisas tais que não considero nem belas, nem justas, nem 
santas, especialmente agora, por Zeus, que sou acusado de impiedade 
por Meleto. 
É evidente que, se com todo vosso juramento, eu vos persuadisse e 
com palavras vos forçasse, eu vos ensinaria a considerar que não
existem deuses, e assim, enquanto me defendo, em realidade me
acusaria, só pelo fato de não crer nos deuses. Mas a coisa está bem longe de ser assim; porquanto, cidadãos
atenienses, creio neles, como nenhum dos meus acusadores, e
encarrego a vós e ao deus de julgar a mim, do modo que puder ser o 
melhor para mim e para vós. 
Segunda Parte - Sócrates é condenado e sugere sua sentença 
XXIII 
A minha impassibilidade, cidadãos atenienses. diante da minha
condenação, entre muitas razões, deriva também desta: eu contava com 
isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim, 
não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de
muitos, pois, se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo 
(nota: dos 501 juízes, 280 a favor e 220 contra). 
De Meleto, ao contrário, estou livre, me parece ainda, e isso é evidente 
a todos: se Anito e Licon não viessem aqui acusar-me Meleto teria 
sido multado em mil dracmas, não tendo obtido o quinto dos votos. 
XXIV 
Eles pedem, pois, para mim, a pena de morte. Pois bem, atenienses, que 
contraproposta vos farei eu? A que mereço, não é assim? Qual, pois? 
Que pena ou multa mereço eu, que em toda a vida não repousei um 
momento, mas descuidando daquilo que todos tem em grande conta, a 
aquisição de riquezas e a administração doméstica, e os comandos
militares, e as altas magistraturas, e as conspirações, e os partidos que 
surgem na cidade, conservei-me na realidade de ânimo bastante brando 
para que pudesse, fugindo de tais intrigas, me livrar delas, não indo 
aonde a minha presença não fosse de nenhuma vantagem nem para vós 
nem para mim mesmo? Voltava-me, ao contrário, para os lados aonde 
eu poderia levar, a cada um em particular, os maiores benefícios,
procurando persuadir cada um de vós a não se preocupar
demasiadamente com suas próprias coisas, antes que de si mesmo, para 
se tornar quanto mais honesto fosse possível; a não cuidar dos
negócios da cidade antes que da própria cidade, e preocupar-se, assim, 
do mesmo modo, com outras coisas. De que sou digno eu, tendo sido 
assim procedido? De um bem, cidadãos atenienses, se devo fazer uma 
proposta conforme o mérito; e um bem tal que me possa convir. E, que 
convém a um pobre benemérito que tem necessidade de estar em paz, 
para vos exortar ao caminho reto? Não há coisa que melhor convenha, cidadãos atenienses, que nutrir um tal homem a expensas do estado, no 
Pritaneu; merece-o bem mais que um de vós que tenha sido vencedor 
nos Jogos olímpicos, na corrida de de cavalos, de bigas ou quadrigas! 
Esse homem, porém, faça com que o sejais; ele, homem rico, não tem 
necessidade de que se cuide de sua subsistência, mas eu tenho
necessidade. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a justiça, 
eis o que indico para mim: ser, a expensas do Estado, nutrido no 
Pritaneu. 
XXV 
Ao contrário, talvez vos pareça que eu, ainda falando disso, o faça com 
arrogância, pouco mais ou menos como quando falava da consideração 
e dos rogos; mas não é assim, cidadãos atenienses, antes é deste modo: 
estou persuadido de que não ofendo ninguém por minha vontade, mas 
não vos posso persuadir também disto, porque o tempo em que
estamos raciocinando juntos é brevíssimo; e eu creio que, se as vossas 
leis, como as de outros povos, não decidissem um juízo capital em um 
dia, mas em muitos, vos persuadiria: ora, não é fácil, em pouco tempo, 
destruir grandes calúnias. 
Estando, pois, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou 
bem longe de fazê-la, a mim mesmo e dizer em meu dano ,que mereço 
um mal, e me assinalar um de tal sorte. Que devo temer? É possível 
que eu não tenha de sofrer a pena que me assinala Meleto e que eu digo 
ignorar se será um bem ou mal? E, ao contrário disso, deverei escolher 
uma daquelas que sei bem ser um mal, e propor-me essa pena? O 
cárcere? E por que devo viver no cárcere, escravo do magistrado que o 
preside, escravo dos Onze. Ou uma multa, ficando amarrado, quanto 
não acabe de paga-la? Seria, pois, o exílio que deveria propor como 
pena para mim? É possível que vós me indiquei essa pena. Ah! eu teria 
verdadeiramente um amor excessivo à vida se fosse irrefletido ao
ponto de não ser capaz de refletir nisso: vós que sois meus
concidadãos acabastes por não achar meios de suportar meus sermões; 
estes se tornaram para vós um fardo bastante pesado e detestável para 
que procurei hoje livrar-vos, serão os meus sermões mais fáceis de 
suportar para os outros? Muito longe disso, atenienses! 
Bela vida, em verdade, seria a minha, nesta idade, viver fora da pátria, 
passando de uma cidade a outra, expulso em degredo. Sei bem que onde quer que eu vá, os jovens ouvirão os meus discursos 
como aqui: se eu os repelir, eles mesmos me mandarão embora,
convencendo os velhos a fazê-lo; e se não os repelir, os seus pais e 
parentes me mandarão embora igualmente, com qualquer pretexto. 
XXVI 
Ora, é possível que alguém pergunte: - Sócrates, não poderias tu viver 
longe da pária, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil 
fazer aceitar a alguns dentre vós: se digo que seria desobedecer ao deus 
e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranqüilo, não me
acreditaríeis, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma fingida 
candura. Se, ao contrário, digo que o maior bem para um homem é 
justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros
argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim 
mesmo e aos outros, e, que uma vida sem esse exame não é digna de 
ser vivida, ainda menos me acreditaríeis, ouvindo-me dizer tais coisas. 
Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas não é fácil torná-lo 
persuasivo. 
E, por outro lado, não estou habituado a acreditar-me digno de
nenhum mal. De fato, se tivesse dinheiro, me multaria em uma soma 
que pudesse pagar, porque não teria prejuízo algum; mas o fato é que 
não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa pagar. 
Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois em 
tanto. Mas Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo e
Apolodoro me obrigam a multar-me em trinta minas, e oferecem
fiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores dignos de 
crédito. 
Terceira Parte - Sócrates se despede do tribunal 
XXVII 
Por não terdes querido esperar um pouco mais de tempo, atenienses, 
ireis obter, da parte dos que desejam lançar o opróbio sobre a nosso 
cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de um
sábio, de Sócrates. Porque, quem vos quiser desaprovar me chamará, 
sem dúvida, de sábio, embora eu não o seja. Pois bem, tivésseis
esperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes, 
de fato, a minha idade. E digo isso não a vós todos, mas àqueles que 
me condenaram à morte. Digo, além disto, mais o seguinte a esses mesmos: É possível que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha 
sido condenado por pobreza de raciocínio, com os quais eu poderia 
vos persuadir, se eu tivesse acreditado que era preciso dizer a fazer 
tudo, para evitar a condenação. Mas não é assim. Cai por falta, não de 
raciocínios, mas de audácia e imprudência, e não por querer dizer-vos 
coisas tais que vos teria sido gratíssimas de ouvir, choramingando,
lamentando e fazendo e dizendo muitas outras coisas indignas, as
quais, certo, estais habituados a ouvir de outros. 
Mas, nem mesmo agora, na hora do perigo, eu faria nada de
inconveniente, nem mesmo agora me arrependo de me ter defendido 
como o fiz, antes prefiro mesmo morrer, tendo-me defendido desse 
modo, a viver daquele outro. 
Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguém
convém tentar todos os meios para fugir à morte. Até mesmo nas
batalhas, de fato, é bastante evidente que se poderia evitar de morrer, 
jogando fora as armas e suplicando aos que perseguem: e muitos
outros meios há, nos perigos individuais, para evitar a morte se se ousa 
dizer e fazer alguma coisa. 
Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja isso: fugir da morte. Bem 
mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E 
agora eu, preguiçoso como sou e velho, fui apanhado pela mais lenta, 
enquanto os meus acusadores, válidos e leves, foram apanhados pela 
mais veloz: a maldade. 
Assim, eu me vejo condenado à morte por vós, condenados de verdade, 
criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha 
pena, vós dentro da vossa. 
E, talvez, essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio que 
cada qual foi tratado adequadamente. 
XVIII 
Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que me
condenastes, porque já estou no ponto em que os homens
especialmente vaticinam, quando estão para morrer. Digo-vos, de fato, 
ó cidadãos que me condenaram, que logo depois da minha morte virá 
uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me 
tendes sacrificado. Fizestes isto acreditando subtrair-vos aoaborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vos
asseguro que tudo sairá ao contrário. 
Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive, 
e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e 
disso tereis maiores aborrecimentosSe acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos, 
não pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz nem 
belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros,mas aplicar-se a se tornar,quanto se puder,melhor.Faço,pois,este vaticinio a vós que me condenastes.Chego ao fim.                                 XIX     
Quanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer de
conversar com eles a respeito deste caso que acaba de ocorrer enquanto 
os magistrados estão ocupados, enquanto não chega o momento de ter 
de ir ao lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo este pouco de 
tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos horas 
juntos, enquanto de pode. É que a vós, como meus amigos, quero 
mostrar, que não desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó 
juízes - uma vez que, chamando-vos juízes vos dou o nome que vos 
convém - aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela minha voz 
habitual do demônio (daimon, gênio) em todos os tempos passados me 
era sempre freqüente e se oponha ainda mais nos pequeninos casos, 
cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito 
bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo 
e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; 
pois bem, o sinal do deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de 
casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. 
Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a 
palavra alguma. 
Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu 
caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando 
pensamos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que, 
por muito menos, o habitual signo, o meu demônio, se me teria
oposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bm. 
Passemos a considerar a questão em si mesma, de como há grande 
esperança de que isso seja um bem. Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem 
absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer 
que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de 
existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, 
de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria 
um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na 
qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite 
às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e 
noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente do que
naquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo, mas até um 
grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os 
outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero 
um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume a uma 
única noite. 
Se, ao contrário, a morte é como uma passagem deste para outro lugar, 
e, se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual 
o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se 
chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se vangloriam serem 
juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diria 
que fazem justiça acolá: Monos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e 
tantos outros deuses e semideuses que foram justos na vida; seria
então essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso? Que preço não 
serieis capazes de pagar, para conversar com Orfeu, Museu, Hesíodo e 
Homero? 
Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim
especialmente. a conversação acolá seria maravilhosa, quando eu
encontrasse Palamedes e Ajax Telamônio e qualquer um dos antigos 
mortos por injusto julgamento. E não seria sem deleite, me parece, 
confrontar o meu com os seus casos, e, o que é melhor, passar o tempo 
examinando e confrontando os de lá com cá, os últimos dos quis tem a 
pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios e 
não são. A que preço, ó juízes, não se consentiria em examinar aquele 
que guiou o grande exército a Tróia, Ulisses, Sísifo, ou infinitos
outros? Isso constituiriam inefável felicidade. Com certeza aqueles de lá mandam a morte por isso, porque além do 
mais, são mais felizes do que os de cá, mesmo porque são imortais, se 
é que o que se diz é verdade 
XXX 
Mas também vós, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação à
morte, e considerar esta única verdade: que não é possível haver algum 
mal para um homem de bem, nem durante sua vida, nem depois da 
morte, que os deuses não se interessam do que a ele concerne; e que, 
por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que a mim concerne, não é 
devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer 
agora e ser libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão por 
que a divina voz não me dissuadiu, e por que, de minha parte, não 
estou zangado com aqueles cujos votos me condenaram, nem contra 
meus acusadores. 
Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles votaram contra 
mim, que me acusaram, pois acreditavam causar-me um mal. Por isto é 
justo que sejam censurados. Mas tudo o que lhes peço é o seguinte: 
Quando os meus filhinhos ficarem adultos, puni-os, é cidadãos,
atormentai-os do mesmo modo que eu os vos atormentei, quando vos 
parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que 
da virtude. E ,se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada,
reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não 
lhes é devido. 
E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos. 
Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, 
quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para deus.