quinta-feira, 23 de maio de 2019

Conclusões sobre Sócrates


Conclusões sobre Sócrates

O discurso de Sócrates trouxe uma série de aquisições e novidades, mas também deixou uma série de problemas em aberto.
Em primeiro lugar, o seu discurso sobre a alma, que se limitava a determinar a obra e a função da própria alma (a alma é aquilo pelo qual nós somos bons ou maus), exigia uma série de aprofundamentos: se ela se serve do corpo e o domina, isso quer dizer que é outra coisa que não o corpo, ou seja, distingue-se dele ontologicamente. Sendo assim, o que é ela? Qual é o seu “ser’’? Qual a sua diferença em relação ao corpo?
Análogo discurso pode-se fazer em relação a Deus.Sócrates conseguiu “desfisicizá-lo”: o seu Deus é bem mais puro do que o ar- pensamento de Diógenes de Apolônia e, em geral, coloca-se decidi­damente acima do horizonte dos físicos. Mas o que é essa Divina Inteligência? Em que ela se distingue dos elementos físicos?
Quanto às aporias do intelectualismo socrático, já falamos delas. Devemos aqui apenas completar o que já foi dito, destacando as últimas aporias, implícitas na doutrina da virtude-saber. E verdade que o saber socrático não é vazio, como pretenderam alguns, dado que tem por objeto apsyché e o cuidado com a psyché e dado ainda que também se cuida dapsyché simplesmente despojando-a das ilusões do saber e levando-a ao reconhecimento do não-saber. Entretanto, também é verdade que o discurso so­crático deixa a impressão de, em um certo ponto, dissipar-se ou, pelo menos, ficar bloqueado no meio do caminho. E é verdade ainda que, assim como era formulado, o discurso socrático só tinha sentido na boca de Sócrates, sustentado pela força irrepetível de sua personalidade. Na boca de seus discípulos, fatalmente, devia se reduzir através da eliminação de algumas instâncias de fundo de que era portador ou então ampliar-se através do aprofunda­mento daquelas instâncias, mediante a sua fundamentação meta­física. Contra as simplificações operadas pelas escolas socráticas menores, mais uma vez seria Platão a tentar dar vim conteúdo preciso àquele saber, atribuindo-lhe o bem como objeto supremo, primeiro genericamente, mas, depois, tentando dar a esse bem uma estatura ontológica, com a construção de uma metafísica.
Também a ilimitada confiança socrática no saber, nologos em geral (e não no seu conteúdo particular), foi duramente abalada pelo êxito problemático da maiêutica. Em última análise, o logos socrático não está em condições de fazer parir qualquer alma, mas apenas as almas grávidas. Trata-se de vima confissão plena de múltiplas implicações, que Sócrates, porém, não sabe e não pode explicitar: o logos e o instrumento dialógico que se funda inteira­mente no logos não bastam para produzir ou, pelo menos,- para fazer com que a verdade seja reconhecida e para fazer com que se viva na verdade. Muitos voltaram as costas para o logos socrático: porque não estavam “grávidos”, diz o filósofo. Mas então quem fecunda a alma e a torna grávida? Essa é uma pergunta que Sócrates não se propôs e à qual, com certeza, não teria podido responder. E, olhando bem, o cerne dessa dificuldade é ô mesmo apresentado pelo comportamento do homem que “vê e conhece o melhor” mas, no entanto, “faz o pior”. Embora, colocando-a dessa forma, Sócrates tenha acreditado contornar a dificuldade com o seu intelectualismo,na verdade colocacada de outra forma, ele não soube contorná-la, eludindo-a com a imagem da “gravidez”, be­líssima, mas que nada resolve.
Uma ultima aporia esclarecerá ainda melhor a forte tensão interna do pensamento de Sócrates. O nosso filósofo apresentou a sua mensagem aos atenienses, parecendo de certa forma fechá-la nos estreitos limites de uma cidade. Sua mensagem não foi por ele apresentada expressamente como uma mensagem para toda a Grécia e para toda a humanidade. Evidentemente, condicionado pela situação sociopolítica, parece que ele não se deu conta de que sua mensagem ia bem além dos muros de Atenas, valendo para o mundo inteiro.
Por outro lado, ter identificado na alma a essência do homem, no conhecimento a verdadeira virtude e no autodomínio e na liberdade interior os princípios cardeais da ética levava à procla­mação da autonomia do indivíduo enquanto tal. Mas somente os socráticos menores é que extrairiam em parte essa dedução e somente os filósofos da época helenística é que a levariam a uma formulação explícita.
Sócrates poderia ser chamado de “Hermas bifronte”:por vim lado, o seu não-saber parece indicar a negação da ciência, por outro parece ser uma via de acesso a uma autêntica ciência superior; por vim lado, a sua mensagem pode ser lida como simples persuasão moral, por outro lado como abertura para as descobertas platônicas da metafísica; por um lado, a sua dialética pode parecer até mesmo sofísticae erística, por outro como fundação da lógica científica; por um lado, sua mensagem parece circunscrita aos muros da polisateniense, por outro se abre ao mundo inteiro, em dimensões cosmopolitas.

A “refutação” e a “maiêutica” socráticas


A “refutação” e a “maiêutica” socráticas

A “refutação” (élenchos), em certo sentido, constituía a pars destruens do método, ou seja, o momento em que Sócrates levava o interlocutor a reconhecer a sua própria ignorância. Primeiro, ele forçava vima definição do assunto sobre o qual se centrava a investigação; depois, escavava de vários modos a definição forne­cida, explicitava e destacava as carências e contradições que implicava; então, exortava o interlocutor a tentar uma nova definição, criticando-a e refutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuava procedendo, até o momento em que o interlo­cutor se declarava ignorante.
E evidente que a discussão provocava irritação ou reações ainda piores nos sabichões e nos medíocres. Mas, nos melhores, a refutação provocava um efeito de purificação das falsas certezas, ou seja, um efeito de purificação da ignorância, a tal ponto que Platão podia escrever a respeito: “(...) Por todas essas coisas, (...) devemos afirmar que a refutação é a maior e mais fundamental purificação. E quem não foi por ela beneficiado, mesmo tratando- se do Grande Rei, não pode ser pensado senão como impuro das mais graves impurezas, privado de educação e até mesmo feio, precisamente naquelas coisas em relação às quais conviria que fosse purificado e belo no máximo grau alguém que verdadeira­mente quisesse ser homem feliz.”
E, assim, passamos ao segundo momento do método dialé­tico. Para Sócrates, a alma só pode alcançar a verdade “se dela estiver grávida”. Com efeito, como vimos, ele se professava igno­rante e, portanto, negava firmemente estar em condições de transmitir um saber aos outros ou, pelo menos, um saber consti­tuído por determinados conteúdos. Mas, da mesma forma que a mulher que está grávida no corpo tem necessidade da parteira para dar à luz, também o discípulo que tem a alma grávida de verdade tem necessidade de uma espécie de arte obstétrica espiritual que ajude essa verdade a vir à luz — e nisso consiste exatamente a “maiêutica” socrática.
Eis a estupenda página em que Platão descreve a maiêutica: “Ora, em todo o resto, a minha arte obstétrica se assemelha à das parteiras, mas difere em uma coisa: ela opera nos homens e não nas mulheres e assiste as almas parturientes e não os corpos. E minha maior capacidade de que, através dela, eu consigo discernir segura­mente se a alma do jovem está parindo fantasmas e mentiras ou a alguma coisa vital e real. Pois algo eu tenho em comum com as parteiras: também eu sou estéril (...) de sabedoria. E a reprovação que tantos já me fizeram, de que eu interrogo os outros, mas, eu próprio, nunca manifesto meu pensamento sobre nenhuma ques­tão, ignorante que sou, é uma reprovação muito verdadeira. E à razão é exatamente esta: Deus me leva a agir como obstetra, mas me interdita de gerar. Em mim mesmo, portanto, eu não sou nada sábio, nem de mim saiu qualquer descoberta sábia que seja geração de minha alma. Entretanto, todos aqueles que gostam de estar comigo, embora alguns deles pareçam inicialmente de todo igno­rantes, mais tarde, continuando a frequentar minha companhia, desde que Deus lhes permita, todos eles extraem disso um extraor­dinário proveito, como eles próprios e os outros podem ver. E está claro que não aprenderam nada de mim, mas só de si mesmos encontraram e geraram muitas e belas coisas. Mas o fato de tê-los ajudado a gerar, esse mérito sim cabe a Deus e a mim.”

A ironia socrática

A ironia socrática

A ironia é a característica peculiar da dialética socrática, não apenas do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Em geral, ironia significa “simulação”. Em nosso caso específico, indica o jogo brincalhão, múltiplo e variado das ficções e dos estratagemas realizados por Sócrates para levar o interlocu­tor a dar conta de si mesmo. Como escreveu um refinado estudioso, “nessa brincadeira, Sócrates transforma em palavras ou fatos um disfarce, mostrando ser um grande amigo do interlocutor, admirar sua capacidade e seus méritos, pedir-lhe conselho ou ensinamentos e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, tem o cuidado de fazer com que a função seja transparente para quem observa mais a fundo” (H. Maier). Em suma: a brincadeira está sempre em função de vim objetivo sério e, portanto, é sempre metódica.
Note-se que, às vezes, em suas simulações irônicas, Sócrates fingia até mesmo acolher como próprios os métodos do interlocutor, especialmente quando era vim homem de cultura, particularmente um filósofo, e brincava de engrandecê-los até o limite da caricatura, para derrubá-los com a mesma lógica que lhes era própria e amarrá-los na contradição.
Mas, por debaixo das várias máscaras que Sócrates assumia seguidamente, eram sempre visíveis os traços da máscara essen­cial, a do não-saber e da ignorância, de que falamos: pode-se até dizer que, no fundo, as máscaras policromáticas da ironia socrática eram variantes da máscara principal, as quais, com um hábil e multiforme jogo de dissolvências, no fim das contas sempre reve­lavam a principal.
Mas ainda restam por esclarecer os dois momentos da “refu­tação” e da “maiêutica”, que são os momentos constitutivos estru­turais da dialética.

O “não saber socrático”

O “não saber socrático”

Os sofistas mais famosos colocavam-se em relação aos ouvin­tes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário, colocava-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe, tendo tudo para aprender.
Mas muitos equívocos têm sido cometidos em relação a esse “não saber” socrático, a ponto de se ver nele o início do ceticismo. Na realidade, ele pretendia ser uma afirmação de ruptura: a) em relação ao saber dos naturalistas, que se havia revelado vão; b) em relação ao saber dos sofistas, que logo se havia revelado mera presunção; c) em relação ao saber dos políticos e dos cultores das várias artes, que quase sempre se revelava inconsistente e acrítico. Mas não é só isso: o significado da afirmação do não-saber socrático pode ser calibrado mais exatamente se, além de relacioná-lo com o saber dos homens, o relacionarmos também com o saber de Deus. Como veremos, para Sócrates Deus é onisciente, estendendo-se o seu conhecimento do universo ao homem, sem qualquer espécie de restrição. Ora, é precisamente quando comparado com a estatura desse saber divino que o saber humano mostra-se em toda a sua fragilidade e pequenez. E, nessa ótica, não apenas aquele saber ilusório de que falamos, mas também a própria sabedoria humana socrática revela-se um não-saber. De resto, na Apologia, inter­pretando a sentença do Oráculo de Delfos, segundo a qual ninguém era mais sábio do que Sócrates, o próprio Sócrates explicita esse conceito: “Unicamente Deus é sábio. E é isso o que ele quer significar em seu oráculo: que a sabedoria do homem pouco ou nada vale. Considerando Sócrates como sábio, creio eu, não quer se referir propriamente a mim, Sócrates, mas somente usar o meu nome como um exemplo. E quase como se houvesse querido dizer assim: ‘Homens, é sapientíssimo dentre vós aquele que, como Sócrates, tiver reconhecido que, na verdade, a sua sabedoria não tem valor.’ ”
A contraposição entre “saber divino” e “saber humano” era uma das antíteses muito caras a toda a sabedoria proveniente da Grécia — que, portanto, Sócrates volta a reafirmar.
Por fim, deve-se destacar o poderoso efeito irônico de benéfico abalo que o princípio do não-saber provocava nas relações com o interlocutor: acarretava o atrito do qual brotava a centelha do diálogo.

O método dialético de Sócrates e sua finalidade


O método dialético de Sócrates e sua finalidade

O método e a dialética de Sócrates também estão ligados à sua descoberta da essência do homem como psyché, porque tendam de modo consciente a despojar a alma da ilusão do saber, eurando-a dessa maneira a fim de tomá-la idônea a receber a verdade. Assim, as finalidades do método socrático são fundamentalmente de natureza ética e educativa e apenas secundária e mediatamente de natureza lógica e gnosiológica. Em suma: dialogar com Sócrates levava a um “exame da alma” e a uma prestação de contas da própria vida, ou seja, a um “exame moral”, como bem destacavam seus contemporâneos. E como podemos ler em um testemunho platônico: “Quem quer que esteja próximo a Sócrates e, em contato com ele, ponha-se a raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado, é arrastado pelas espirais do discurso e inevitavelmente forçado a seguir adiante, até ver-se prestando contas de si mesmo, dizendo inclusive de que modo vive e de que modo viveu. E, uma vez que se viu assim, Sócrates não mais o deixa.”
E precisamente a esse “prestar contas da própria vida”, que era o fim específico do método dialético, é que Sócrates atribui a verdadeira razão que lhe custou a vida: para muitos, calar Sócra­tes através da morte significava libertar-se de ter que “desnudar a própria alma”. Mas o processo posto em movimento por Sócrates já se havia tomado irreversível. E a supressão física de sua pessoa não podia mais, de modo algum, deter esse processo. Atai ponto que Platão chegou a pôr na boca de Sócrates esta profecia: “(...) Eu digo, cidadãos que me haveis matado, que uma vingança recairá sobre vós, logo depois de minha morte, bem mais grave do que aquela pela qual vos vingastes de mim, matando-me. Hoje, vós fizestes isso na esperança de que vos tereis libertado de ter que prestar contas de vossa vida. No entanto, vos acontecerá inteiramente o contrário: eu vô-lo predigo. Não serei mais somente eu, mas muitos a vos pedir contas: todos aqueles a quem até hoje eu detinha e vós não percebíeis. E serão tanto mais obstinados quanto mais jovens são — e tanto mais vós vos indignardes. Pois se, matando homens, pensais impedir que alguém mostre a vergonha de vosso viver errôneo, não estais pensando bem. Não, não é esse o modo de libertar-vos dessas pessoas, não é absolutamente possível e nem belo. Mas há outro modo, belíssimo e muito fácil: não cortar a palavra alheia, mas, muito mais, trabalhar para ser sempre mais virtuoso e melhor.”
E agora, que estabelecemos a finalidade do “método” socrá­tico, devemos identificar a sua estrutura.
A dialética de Sócrates coincide com o seu próprio dialogar (dia-logos), que consta de dois momentos essenciais: a “refutação” e a “maiêutica”. Ao fazê-lo, Sócrates valia-se da máscara do “não saber” e da temida arma da “ironia”. Cada um desses pontos deve ser compreendido adequadamente.

A teologia socrática



A teologia socrática

E qual era a concepção de Deus que Sócrates ensinava, a ponto de oferecer a seus inimigos o pretexto para condená-lo à morte, já que era contrária aos “deuses em que a cidade acredi­tava”? Era a concepção indiretamente preparada pelos filósofos naturalistas, culminando no pensamento de Anaxágoras e de Diógenes de Apolônia: o Deus-inteligência ordenadora. Sócrates, porém, desligou essa concepção dos pressupostos próprios desses filósofos (sobretudo de Diógenes), “des-fisicizando-a” e deslocando- a para um plano afastado o mais possível dos pressupostos próprios da “filosofia da natureza” anterior.
Sobre esse tema, pouco sabemos através de Platão, ao passo que Xenofonte nos informa amplamente. Eis o raciocínio registra­do nos Memorabilia, que constitui a primeira prova racional da existência de Deus que chegou até nós e que iria constituir a base de todas as provas posteriores: a) Aquilo que não é simples obra do acaso, sendo constituído para alcançar um objetivo e um fim, pressupõe uma inteligência que o produziu por razões evidentes. Ademais, observando o homem, em especial, notamos que cada um e todos os seus órgãos estão constituídos de tal modo que não podem ser absolutamente explicáveis como obra do acaso, mas apenas como obra de uma inteligência que idealizou expressamente essa constituição, b) Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que, ao contrário dos artífices terrenos, que podem ser vistos ao lado de suas obras, essa Inteligência não pode ser vista. Mas Sócrates observa que essa objeção não procede, porque a nossa alma (= inteligência) também não pode ser vista e, mesmo assim, ninguém ousa afirmar que, pelo fato de a alma (= inteligência) não ser vista, também não existe e que nós fazemos por acaso tudo o que fazemos,
c) Por fim, segundo Sócrates, é possível estabelecer, com base nos privilégios que o homem tem em relação a todos os outros seres (como, por exemplo, a estrutura física mais perfeita e, sobretudo, a posse de alma e de inteligência), que o artífice divino cuidou do homem de um modo inteiramente particular.
Como se vê, o argumento gira em tomo deste núcleo central: o mundo e o homem são constituídos de tal modo (ordem, finali­dade) que só uma causa adequada (ordenadora, finalizante e, portanto, inteligente) pode explicá-los. E, com sua ironia, Sócrates lembrava àqueles que rejeitavam esse raciocínio que nós pos­suímos uma parte de todos os elementos que estão presentes em grandes massas no universo, coisa que ninguém ousa negar: como então poderíamos pretender que nós, homens, nos assenhoreamos de toda a inteligência que existe, não podendo haver nenhuma ou­tra inteligência fora de nós? E evidente a incongruência lógica des­sa pretensão.
O Deus de Sócrates, portanto, é a inteligência, que conhece todas as coisas sem exceção e é atividade ordenadora e providência. E uma providência, porém, que se ocupa com o mundo e os homens em geral, como também do homem virtuoso em particular (para a mentalidade antiga, o semelhante tem comunhão com o seme­lhante, razão pela qual Deus tem uma comunhão estrutural com o bom), mas não com o homem individualmente enquanto tal (a menos que se trate de homem mau). Somente no pensamento cristão é que surgiria uma providência que se ocupa com o in­divíduo enquanto tal.

A revolução da “não-violência”

A revolução da “não-violência”

Muitíssimo se discutiu sobre as razões que levaram à conde­nação de Sócrates. Do ponto de vista jurídico, está claro que procediam os crimes que lhe foram imputados. Ele “não acreditava nos deuses da cidade” porque acreditava num Deus superior e “corrompia os jovens” porque lhes ensinava essa doutrina. En­tretanto, depois de se ter defendido corajosamente no tribunal, tentando demonstrar que estava com a verdade, mas não tendo conseguido convencer os juízes, aceitou a condenação e recusou-se a fugir do cárcere, apesar dos amigos terem organizado tudo para a sua fuga. As suas motivações eram exemplares: a fuga teria significado uma violação do veredito e, portanto, violação da lei. A verdadeira arma de que o homem dispõe é a sua razão e, portanto, a persuasão. Se, fazendo uso da razão, o homem não consegue alcançar seus objetivos com a persuasão, então deve se conformar, porque, como tal, a violência é tuna coisa ímpia. Como Platão coloca na boca de Sócrates: “Não se deve desertar, nem retirar-se, nem abandonar o seu posto, mas sim, na guerra, no tribunal e em qualquer lugar, é preciso fazer aquilo que a pátria e a cidade ordenam ou então persuadi-las em que consiste a justiça, ao passo que fazer uso da violência é coisa ímpia”. E Xenofonte escre­ve: “Preferiu morrer, permanecendo fiel à lei, do que viver vio­lando-a”.
Ao dotar Atenas de leis, Sólon já havia proclamado em alta voz: “Não quero valer-me da violência das tiranias”, mas sim da justiça. E um estudioso observou oportunamente o seguinte: “Na Ática dos primeiros séculos, o fato de que nenhum homem em cujas mãos o destino colocou o poder tenha deixado de exercê-lo nem a ele renunciado por amor à justiça é algo que teve consequências incalculáveis para a vida jurídica e política da Grécia e da Europa” (B. Snell). Mas a posição assumida por Sócrates foi ainda mais importante. Com ele, além de ser explicitamente teorizada, a concepção da revolução da não-violência foi demonstrada inclusive com sua própria morte, sendo desse modo transformada em uma “conquista para sempre”. Ainda recentemente, Martin Luther King, o líder negro norte-americano da revolução não-violenta, baseava-se nos princípios socráticos, além dos cristãos.

O novo conceito de felicidade



O novo conceito de felicidade

Precisamente a partir de Sócrates, a maior parte dos filósofos gregos passou a apresentar suas mensagens ao mundo como men­sagens de felicidade. Em grego, “felicidade” se diz “eudaimonía”, que, originalmente, significava ter tido a sorte de possuir um demônio-guardião bom e favorável, que garantia uma boa sorte e uma vida próspera e agradável. Mas os pré-socráticos já haviam interiorizado esse conceito: Heráclito escrevia que “o caráter moral é o verdadeiro demônio do homem” e que “a felicidade é bem diferente dos prazeres”, ao passo que Demócrito dizia que “não se tem a felicidade nos bens exteriores” e que “a alma é a morada de nossa sorte”.
Com base nas premissas que ilustramos, o discurso de Sócrates aprofunda e fundamenta do modo sistemático precisa­mente e esses conceitos. A felicidade não pode vir das coisas exterio­res, do corpo, mas somente da alma, porque esta e só esta é a sua essência. E a alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sócrates: “Para mim, quem é virtuoso, seja homem ou mulher, é feliz, ao passo que o injusto e malvado é infeliz”. Assim como a doença e a dor física são desordem do corpo, a saúde da alma é ordem da alma — e essa ordem espiritual ou harmonia interior é a felicidade.
Sendo assim, segundo Sócrates, o homem virtuoso entendido nesse sentido “não pode sofrer nenhum mal, nem na vida, nem na morte”. Nem na vida, porque os outros podem danificar-lhe os haveres ou o corpo, mas não arruinar-lhe a harmonia interior e a ordem da alma. Nem na morte, porque, se existe um além, o virtuoso será premiado; se não existe, ele já viveu bem no aquém, ao passo que o além é como um ser no nada. De qualquer forma, Sócrates tinha a firme convicção de que a virtude já tem o seu prêmio intrinsecamente, em si mesma, isto é, essencialmente: assim, vale a pena ser virtuoso, porque a própria virtude já cons­titui um fim. E, sendo assim, para Sócrates, o homem pode ser feliz nesta vida, quaisquer que sejam as circunstâncias em que lhe cabe viver e qualquer que seja a situação no além. O homem é o verdadeiro artífice de sua própria felicidade ou infelicidade.

A descoberta socrática do conceito de liberdade


A descoberta socrática do conceito de liberdade

A mais significativa manifestação da excelência da psyché ou razão humana se dá naquilo que Sócrates denominou de “autodomínio” (enkráteia), ou seja, do domínio de si mesmo nos estados de prazer, dor e cansaço, no urgir das paixões e dos impulsos: “Considerando o autodomínio como a base da virtude, cada homem deveria procurar tê-lo.” Substancialmente, o auto­domínio significa domínio de sua racionalidade sobre a sua própria animalidade, significa tomar a alma senhora do corpo e dos instintos ligados ao corpo. Consequentemente, pode-se compre­ender perfeitamente que Sócrates tenha identificado expressa­mente a liberdade humana com esse domínio da racionalidade sobre a animalidade. O verdadeiro homem livre é aquele que sabe dominar os seus instintos, o verdadeiro homem escravo é aquele que, não sabendo dominar seus instintos, toma-se vítima deles.
Estreitamente ligado a esse conceito de autodomínio e de liberdade encontra-se o conceito de “autarquia”, isto é, de “auto­nomia”. Deus não tem necessidade de nada. E o sábio é aquele que mais se aproxima desse estado, sendo portanto aquele que procura ter necessidade apenas de muito pouco. Com efeito, para o sábio que vence os instintos e elimina todas as coisas supérfluas, basta a razão para que viva feliz.
Como foi justamente ressaltado, estamos aqui diante de uma nova concepção de herói. O herói, tradicionalmente, era aquele que é capaz de vencer todos os inimigos, os perigos, as adversidades e o cansaço externos. Já o novo herói é aquele que sabe vencer os inimigos interiores: “Somente o sábio, que esmagou os monstros selvagens das paixões que se lhe agitam no peito, é verdadeira­mente suficiente a si mesmo: ele se aproxima ao máximo da divindade, do ser que não tem necessidade de nada” (W. Jaeger).

Os paradoxos da ética socrática



Os paradoxos da ética socrática

A tese socrática que apresentamos implicava duas consequências, que foram consideradas muito mais como “paradoxos”, mas que são muito importantes e devem ser oportunamente clarificadas: 1) A virtude (cada uma e todas as virtudes, sabedoria, justiça, fortaleza, temperança) é ciência (conhecimento) e o vício (cada um e todos os vícios) é ignorância. 2) Ninguém peca volun­tariamente: quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem. Essas duas proposições resumem tudo o que foi denominado “intelectua­lismo socrático”, enquanto reduzem o bem moral a um dado de conhecimento, de modo a considerar impossível conhecer o bem e não fazê-lo. O intelectualismo socrático influenciou todo o pensamento dos gregos, a ponto de tomar-se quase um mínimo denominador comum de todos os sistemas, seja na época clássica, seja na época helenística. Entretanto, malgrado o seu excesso, as duas proposições enunciadas contêm algumas instâncias muito importantes.
1) Em primeiro lugar, cabe destacar a forte carga sintética da primeira proposição. Com efeito, a opinião corrente entre os gregos antes de Sócrates (inclusive a dos sofistas, que, no entanto, pretendiam ser “mestres da virtude”) considerava as diversas virtudes como uma pluralidade (uma coisa é a “justiça”, outra a “santidade”, outra a “prudência”, outra a “temperança”, outra a “sabedoria”), mas da qual não sabiam captar o nexo essencial, ou seja, aquele algo que faz com que as diversas virtudes sejam uma unidade (algo que faça precisamente com que todas e cada uma delas sejam “virtudes”). Além disso, todos viam as diversas virtu­des como coisas fundadas nos hábitos, no costume e nas convenções aceitas pela sociedade. Sócrates, no entanto, tenta submeter a vida humana e os seus valores ao domínio da razão (assim como os naturalistas haviam tentado submeter o cosmos e suas manifes­tações ao domínio da razão). E como, para ele, a própria natureza do homem é a sua alma, ou seja, a razão, e as virtudes são aquilo que aperfeiçoa e concretiza plenamente a natureza do homem, ou seja, a razão, então é evidente que as virtudes revelam-se como tuna forma de ciência e de conhecimento, precisamente porque são a ciência e o conhecimento que aperfeiçoam a alma e a razão, como já dissemos.
2) Mais complexas são as razões que estão na base do segundo paradoxo. Sócrates, porém, viu muito bem que o homem, por sua natureza, procura sempre o seu próprio bem e que, quando faz o mal, na realidade não o faz porque se trate do mal, mas porque daí espera extrair um bem. Dizer que o mal é “involuntário” significa que o homem se engana ao esperar um bem dele e que, na realidade, está cometendo um erro de cálculo e, portanto, se enganando. Ou seja, em última análise, é vítima de “ignorância”.
Ora, Sócrates tem perfeitamente razão quando diz que o conhecimento é condição necessária para fazer o bem (porque, se não conhecemos o bem, não podemos fazê-lo), mas está enganado ao considerar que, além de condição necessária, ela também é condição suficiente. Em suma, Sócrates cai numa espécie de racionalismo. Com efeito, para fazer o bem também é necessário o concurso da “vontade”. Mas os filósofos gregos não detiveram sua atenção na “vontade”, que iria se tornar central e essencial na ética dos cristãos. Para Sócrates, em conclusão, é impossível dizer “vejo e aprovo o melhor, mas no agir me atenho ao pior”, porque quem vê o melhor necessariamente também o faz. Em consequência, para Sócrates, como para quase todos os filósofos gregos, o pecado se reduz a um “erro de cálculo”, a um “erro de razão”, precisamente à “ignorância” do verdadeiro bem.

O novo significado de “virtude” e o novo quadro de valores

O novo significado de “virtude” e o novo quadro de valores
Em grego, aquilo que nós hoje chamamos “virtude” se diz “areté”, como já acenamos, significando aquilo que toma uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou, melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser. (Os gregos, portanto, falavam de virtude dos vários instrumentos, de virtude dos animais etc. Por exemplo: a “virtude” do cão é a de ser um bom guardião, a do cavalo é a de correr velozmente e assim por diante.) Consequentemente, a “virtude” do Intelectualismo ético.
O homem outra não pode ser senão aquilo que faz com que a alma seja tal como a sua natureza determina que seja, ou seja, boa e perfeita. E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conheci­mento”, ao passo que o “vício” seria a privação de ciência ou conhecimento, vale dizer, a “ignorância”.
Desse modo, Sócrates opera uma revolução no tradicional quadro de valores. Os verdadeiros valores não são aqueles ligados às coisas exteriores, como a riqueza, o poder, a fama, e tampouco os ligados ao corpo, como a vida, o vigor, a saúde física e a beleza, mas somente os valores da alma, que se resumem, todos, no “conhecimento”. Naturalmente, isso não significa que todos os valores tradicionais tomam-se desse modo “desvalores”; significa, simplesmente, que “em si mesmos, não têm valor”. Eles só se tomam ou não valores se forem usados como o “conhecimento” exige, òu seja, em função da alma e de sua “areté”.
Em resumo: riqueza, poder, fama, saúde, beleza e semelhan­tes “(...) ao que me parece, por sua natureza, não podem ser chamados de bens em si mesmos. A proposição é outra: dirigidos pela ignorância, revelam-se males maiores do que os seus contrários, porque mais capazes de servir a uma má direção; se, no entanto, são governados pelo juízo e pela ciência ou conhecimento, são bens maiores; em si mesmos, nem uns nem outros têm valor”.

A descoberta da essência do homem

A descoberta da essência do homem (o homem é a sua psyché)
Depois de um período de tempo em que ouviu a .palavra dos últimos naturalistas, mas sem se considerar de modo algum satisfeito, como já dissemos, Sócrates concentrou definitivamente o seu interesse na problemática do homem. Procurando resolver os problemas do “princípio” e da physis, os naturalistas se contradis­seram a ponto de sustentar tudo e o contrário de tudo (o ser é uno, o ser é múltiplo; nada se move, tudo se move; nada se gera nem se destrói, tudo se gera e se destrói), o que significa que se propuseram problemas insolúveis para o homem. Consequentemente, ele se concentrou no homem, como os sofistas, mas, ao contrário deles, soube chegar ao fundo da questão, a tal ponto que chegou a admitir, malgrado a sua afirmação geral de não-saber (da qual falaremos adiante), que era sábio nessa matéria: “Na verdade, atenienses, por nenhuma outra razão eu granjeei este nome senão por causa de certa sabedoria. E que sabedoria é essa? Essa sabedoria é precisamente a sabedoria humana (ou seja, a sabedoria que o homem pode ter sobre o homem)—e pode ser que, dessa sabedoria, eu seja sábio.”
Os naturalistas procuraram responder à seguinte questão: “O que é a natureza ou a realidade última das coisas?” Sócrates, porém, procura responder à questão: “O que é a natureza ou realidade última do homem?”, ou seja, “o que é a essência do homem?”.
Finalmente, a resposta é precisa e inequívoca: o homem é a sua alma, enquanto é precisamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E por “alma” Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. Em breve: para Sócrates, a alma é o eu consciente, ou seja, a consciência e a personalidade intelectual e moral. Consequentemente, com essa sua descoberta, como foi justamente destacado, “Sócrates criou a tradição moral e intelectual da qual a Europa sempre viveu desde então” (A.E. Taylor). E um dos maiores historiadores do pensamento grego explicitou ainda mais: “Para nós, a palavra alma, graças às correntes espirituais pelas quais passou à história, soa sempre com vima acentuação ética e religiosa. Assim como as palavras serviço de Deus e cuidar da alma (estas também usadas por Sócrates), ela tem uma conotação cristã. Mas ela assumiu esse elevado significado pela primeira vez na pregação persuasiva de Sócrates” (W. Jaeger).
E evidente que, se a essência do homem é a alma, cuidar de si mesmo significa cuidar da própria alma mais do que do corpo. E ensinar os homens a cuidarem da própria alma é a tarefa suprema do educador, precisamente a tarefa que Sócrates considera ter recebido de Deus, como se lê na Apologia: “Que é isto (...) é a ordem de Deus. E estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis cuidar do corpo, nem das riquezas, nem de qualquer outra coisa antes e mais do que da alma, de modo que ela se tome ótima e virtuosíssima, e de que não é das riquezas que nasce a virtude, mas da virtude que nasce a riqueza e todas as outras coisas que são bens para os homens, tanto individualmente para os cidadãos como para o Estado.”
Um dos raciocínios fundamentais feitos por Sócrates para provar essa tese é o seguinte: uma coisa é o “instrumento” que se usa e outra é o “sujeito” que usa o instrumento. Ora, o homem usa o seu próprio corpo como um instrumento, o que significa que o sujeito, que é o homem, e o instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta “o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas sim que é “aquilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é a psyché, a alma (= a in­teligência)”, de modo que a conclusão é inevitável: “A alma nos or­dena conhecer aquele que nos adverte: Conhece-te a ti mesmo. ” Nesse ponto, Sócrates já havia levado sua doutrina a tal ponto de consciência e de reflexão crítica que chegou a deduzir todas as conseqüências que logicamente brotam dela, como veremos.

O Daimonion Socrático

O "Daimonion" Socrático

Entre as acusações contra Sócrates estava também a de que era culpado “de introduzir novos daimónia”, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sócrates diz o seguinte a propósito da questão: “A razão (...) é aquela que muitas vezes e em diversas circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino e demoníaco, precisamente aquilo que Melito (o acusa­dor), jocosamente, escreveu no seu ato de acusação: é como uma voz que se faz ouvir dentro de mim desde quando era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer aquilo que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exorta a fazer.” Portanto, o daimonion socrático era “uma voz divina” que lhe vetava deter­minadas coisas: ele o interpretava como nma espécie de sortilégio, que o salvou várias vezes dos perigos ou de experiências negativas.
Os estudiosos ficaram muito perplexo diante desse daimonion. E as exegeses que dele foram propostas são as mais díspares. Alguns pensaram que Sócrates estivesse ironizando, outros fala­ram de voz da consciência, outros do sentimento que perpassa o gênio. E até se poderia incomodar a psiquiatria para entender a “voz divina” como fato patológico ou então chamar à cena as categorias da psicanálise. Mas é claro que, assim fazendo, estamos caindo no arbítrio.
Se quisermos nos limitar aos fatos, devemos raciocinar como segue.
Em primeiro lugar, deve-se destacar que o daimonion não tem nada a ver com o campo das verdades filosóficas. Com efeito, a “voz divina” interior não revela em absoluto a Sócrates a “sabe­doria humana” de que ele é portador, nem qualquer das propostas gerais ou particulares de sua ética. Para Sócrates, os princípios filosóficos extraem sua validade do logos e não da divina revelação.
Em segundo lugar, Sócrates não relacionou com o daimonion nem mesmo a sua opção moral de fundo, que, no entanto, ele considera provir de uma ordem divina: “Cabe-me fazer isto (fazer filosofia e exortar os homens a cuidarem da alma) porque fui ordenado por Deus, com vaticínios e sonhos, em suma, com qual­quer daqueles modos pelos quais a sorte divina ordena, por vezes, o homem a fazer alguma coisa.” Já o daimonion não lhe “ordenava”, mas lhe “vetava”.
Excluídos os campos da filosofia e da opção ética de fundo, resta apenas o campo dos eventos e ações particulares. E é exata­mente a esse campo que se referem todos os textos à disposição sobre o daimonion socrático. Trata-se, portanto, de um fato que diz respeito ao indivíduo Sócrates e aos acontecimentos particulares de sua existência: era um “sinal” que, como dissemos, o impedia de fazer coisas particulares que lhe teriam acarretado prejuízos. A coisa da qual o afastou mais firmemente foi a participação ativa na vida política, sobre o que ele diz: “Vós o sabeis bem, atenienses, que, se há tempos eu me houvesse metido a ocupar-me dos negócios do Estado (coisa da qual o demônio me afasta), há tempos eu já estaria morto e não teria feito nada de útil, nem para vós nem para mim.”
Em suma, o daimonion é algo que diz respeito à excepcional personalidade de Sócrates, devendo ser colocado no mesmo plano de certos momentos de concentração muito intensa, bastante próximos aos arrebatamentos de êxtase em que Sócrates mergu­lhava algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual nossas fontes falam expressamente. Portanto, o daimonion não deve ser relacionado com o pensamento e a filosofia de Sócrates: ele próprio manteve as duas coisas distintas e separadas—e o mesmo deve fazer o intérprete.